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Presidente da Argélia fala na TV em língua incompreensível

Por Agencia Estado
Atualização:

A Argélia passa por um período de agitações violentas, nas montanhas de Cabília, onde vivem berberes e não árabes, rixas entre os jovens e os policiais. 60 mortos. Então, o presidente argelino, Abdelaziz Bouteflika fala na TV. O que ele diz? Não é isso que me interessa. O fascinante, nessa aparição do chefe do Estado na TV, depois de 60 crianças mortas, é que Bouteflika se expressa em "árabe literário", e não no "dialeto". Opção surpreendente: Bouteflika dirige-se a seu povo dolorido, o que é uma excelente idéia, mas fala a esse povo em uma língua incompreensível, uma língua das profundezas dos tempos, que ninguém emprega mais e que seus ouvintes, ou seja, esses jovens berberes que brigam com os policiais, ignoram totalmente. É claro que o árabe literário é ensinado nos liceus. Trata-se do árabe que se falava nos séculos de prosperidade da civilização árabe (entre os séculos 7 e o 15 aproximadamente) e que, sem dúvida, ainda é falado hoje em alguns círculos estreitos de eruditos, de estetas, de professores. Mas para os argelinos pareceu um "marciano". A decisão de Bouteflika não foi bem compreendida. Para tentar justificá-la, o que dizer? Que Bouteflika, intelectual brilhante, não sabe o árabe atual, o árabe das ruas? Mas isso não é verdade: durante a campanha das eleições presidenciais, Bouteflika falou a língua mais atual, que é chamada "argelês", ou seja, o árabe popular que se elabora e evolui diariamente nas ruas. E então? Será que Bouteflika queria introduzir em seu campo e retomar entre seus colaboradores a sacralidade do incompreensível, a suntuosidade dos tempos passados, a elegância de uma "língua morta"? Mais ou menos como a Igreja (em todo caso, até o Concílio Vaticano II e, felizmente, ainda hoje) falava uma língua morta, uma língua antiga como a poeira do tempo, o latim, para melhor traduzir a grandeza incompreensível de Deus e seu admirável e enorme distanciamento. Mas, no caso de Bouteflika e de seu estranho discurso, Deus não era parte interessada. A não ser que Bouteflika quisesse lançar, entre ele e seus ouvintes pouco cultos, uma outra ponte, a da História, a dos séculos. O método Bouteflika terá êxito? No momento, nada garante e nada impede. Mas surge uma outra questão: por que não estender esse método a outros mandatos políticos? O presidente da França iria se dirigir a seus concidadãos em gaulês, exercício ainda mais louvável porque ninguém sabe essa língua, uma vez que a civilização gaulesa era oral. Ou então Fernando Henrique Cardoso faria um discurso em latim? Nessa brincadeira, Saddam Hussein ganharia a competição, pois falaria a seus compatriotas iraquianos em sumério, que é a língua do Paraíso terrestre, pensa-se às vezes. Não faltaria charme: Saddam Hussein leria seu discurso, traçado em caracteres cuneiformes em enormes blocos de pedra. Em seguida, o assessor de imprensa colocaria a pedra sob o braço e voltaria ao palácio. E George W. Bush? Falaria respeitando o velho inglês de Shakespeare? O de Much Ado about Nothing (Muito Barulho por Nada) ou, em uma versão otimista, o de All Well That Ends Well (Tudo Bem Quando Termina Bem)? (Tradução de Wanda Caldeira Brant)

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