Projeto de poder do Planalto está, indiscutivelmente, acima de todos

Brasil vai se afundando em uma mistura de mar de sangue e de lama

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Por Hussein Kalout
Atualização:

Fisiologismo elevado a enésima potência é componente indenitário e cultural inseparável da história política do Brasil. Agenda programática e interesse nacional são dois pilares que, nos dias atuais, se situam bem longe das expectativas do povo brasileiro. Negociatas e acochambramentos que dominam os arranjos político-partidários nesses tempos de pandemia, vão legando à sociedade um Estado em coma moral. 

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Os aliados de outrora tornaram-se adversários circunstanciais no embate pela máquina pública. Os rivais de ontem compõem, nos dias de hoje, alianças conjunturais pela rapinagem do espólio nacional – mensurado em recursos financeiros e cargos públicos. 

Na gramática do presidente Jair Bolsonaro, a expressão “nova política” nada mais é do que praticar com transcendência a velha política. O orçamento secreto é a fórmula moderna do mensalão de outros tempos. Com o governo imerso em um passivo descomunal diante de incontáveis crimes – uns dolosamente como se vê na pandemia e outros culposamente por falta de visão governamental –, o Brasil vai se afundando em uma mistura de mar de sangue e de lama. 

O presidente Jair Bolsonaro passou cerca de três décadas dentro do parlamento brasileiro sendo forjado nesse fisiologismo e encontrou na baixa política o seu corrimão de segurança. Slogan a parte, para o atual governo o Centrão, no momento, está acima de tudo. E o projeto de poder do Planalto está, indiscutivelmente, acima de todos. 

Com o governo imerso em um passivo descomunal diante de incontáveis crimes – uns dolosamente como se vê na pandemia e outros culposamente por falta de visão governamental –, o Brasil vai se afundando em uma mistura de mar de sangue e de lama Foto: REUTERS

O golpe contra a democracia não mais requer tanques nas ruas. Desvirtuamento das instituições – aquela imposta ao Exército Brasileiro – é o caminho mais curto para a materialização do golpe. A estratégia é o de enfraquecê-las para que se tornem inertes. O País observa, passivamente, o desmonte dos avanços institucionais logrados desde a redemocratização. Qualquer alusão a um robusto estelionato eleitoral é apenas uma mera coincidência. Sob o domínio de um populismo caudilesco, a elite política e econômica do País, intimidada ou não, confinou-se ao silêncio. 

Desde o primeiro governo democrático no pós-regime militar, o Centrão joga a sua melhor partida. Nada mais perfeito do que um presidente limitado, enfim, para que o fisiologismo político se imponha como principal e única opção de governança – aqui nem de longe se trata de presidencialismo de coalizão. 

Parte dos 55% dos brasileiros que escolheram o atual projeto político, acreditando na tríade do falso profeta – combate à corrupção, abertura econômica e “nova política” –, descobriram que foram rotundamente enganados. Pior, alguns seguem em dúvida se devem ou não mandatar o atual inquilino do Planalto para mais quatro anos de incompetência e desserviço ao País.

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O presidente da República joga o clássico jogo da política brasileira: o fisiologismo em estado lapidar. Como se vê, aliás, o próprio mandatário é hoje o mais aplicado discípulo do establishment! O mesmo establishment que ele prometeu combater em sua campanha. E o mais lamentável e triste, é o de ver a instituição Forças Armadas sendo dragada para o fundo do buraco por uma figura que nunca respeitou a casa militar e tampouco demonstrou apreço por sua nação, em três décadas de vida parlamentar. 

A atenção política dispensada para receber a toque de caixa a “cova américa” – como bem expressou o jornalista Juca Kfouri – vis-à-vis a atenção auferida à compra da vacina, revelam duas características importantes: 1) a crueza de um governo sem compromisso algum com a moralidade pública; 2) a capacidade de um operador mordaz que lutará, com todos os instrumentos disponíveis (legais e ilegais), para garantir a sua sobrevivência política. 

Bolsonaro não está morto no xadrez eleitoral. Apesar de seus pendores antidemocráticos, sua força se apoia na ignorância e nas necessidades de um povo que clama por migalhas; em corporações sedentas por regalias; em um sistema político efémero. O Estado se tornou refém do corporativismo e foi capturado para servir a grupos específicos de interesses. 

Com a recuperação da economia, programas sociais turbinados, isenção fiscal para o setor empresarial e na ausência de entendimento – até o momento – entre as forças democráticas, Bolsonaro será um candidato potente e adversário duro de ser batido. 

* Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2017-2018). 

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