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Próxima jogada de Putin é um mistério, do jeito que ele gosta; leia análise 

Mensagens contraditórias - e por vezes ameaçadoras - do Kremlin desconcertam  autoridades ocidentais e especialistas em questões russas, mostrando o desejo do líder russo em manter seus rivais sob pressão

Por Anton Troianovski
Atualização:

GENEBRA — O presidente russo, Vladimir Putin, passou meses concentrando cerca de 100 mil soldados nas imediações da fronteira russa com a Ucrânia. Mas Moscou afirma não ter nenhuma intenção de invadir. Qual será a próxima jogada da Rússia? Exceto por Putin, talvez ninguém saiba — o que está de acordo com o projeto dessa estratégia.

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O mistério em torno das intenções do líder russo permaneceu denso como neblina nesta semana, após um alto diplomata do Kremlin emitir uma série de mensagens contraditórias ao sair dos dois dias de negociações de segurança de alto nível com os Estados Unidos.

Depois de declarar que as negociações foram “profundas” e “concretas”, o vice-ministro russo de Relações Exteriores, Serguei Ryabkov, alertou que um fracasso em atender as exigências da Rússia poderia colocar em risco “a segurança de todo o continente europeu”.

Tanque russo dispara durante exercício militar perto da cidade Rostov, na fronteira com a Ucrânia Foto: AP

As posições oscilantes e com frequência ameaçadoras desconcertam até mesmo aqueles que ganham a vida decodificando as intenções de Putin. “A opinião de especialista que posso pronunciar oficialmente é: quem diabos pode saber?”, afirmou em entrevista pelo telefone Fiódor Lukyanov, um proeminente analista de política externa russa que dirige um conselho que presta consultoria para o Kremlin.

Analistas afirmaram que nem os colaboradores mais próximos de Putin — e muito menos Ryabkov, que liderou a delegação da Rússia nas negociações desta semana em Genebra — devem saber com certeza se o líder russo contempla seriamente uma guerra em escala total contra a Ucrânia. E também não devem saber quais concessões dos americanos ele está preparado para aceitar para pôr fim à crise.

Em vez disso, Putin pode ainda não ter tomado nenhuma decisão, de acordo com analistas russos e autoridades americanas. E regozija ao manter o Ocidente sob pressão. “O que importa são os resultados”, afirmou a repórteres na terça-feira o porta-voz de Putin, Dimitri Peskov, mantendo o suspense. “Por agora, não há nada a dizer a respeito de quaisquer resultados.”

As negociações continuaram na quarta-feira, quando autoridades russas se reuniriam com representantes dos EUA e seus aliados da Otan em Bruxelas, e se seguirão nesta quinta-feira, em um encontro da Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), grupo de 57 países que inclui a Ucrânia, assim como Rússia e EUA.

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Posteriormente, afirmou Peskov, a Rússia decidirá “se faz sentido” avançar com a diplomacia.

A estratégia temerária de Putin nos meses recentes serve de objeto de estudo a respeito de sua habilidade de usar tensão e imprevisibilidade para buscar grandes vantagens jogando com cartas geopolíticas aparentemente fracas. Enquanto luta contra uma economia estagnada e alianças esfarrapadas, a Rússia lida com situações voláteis em pelo menos quatro fronteiras: com Belarus, Casaquistão, Ucrânia e o Sul do Cáucaso.

Por anos, Putin enfureceu-se com a expansão da Otan ao leste e o apoio americano ao sentimento pró-Ocidente na Ucrânia; agora, ao criar uma nova crise de segurança que ameaça complicar a agenda do presidente Joe Biden, o russo foi bem-sucedido em ganhar a atenção de Washington.

“Pela primeira vez em 30 anos os EUA concordaram em discutir temas impensáveis até um ano atrás”, afirmou Tatiana Stanovaya, fundadora da firma de análise política R.Politik.

Melhor tática

Agora que o presidente russo levou os americanos para mesa de negociação, Putin persegue outra clássica estratégia putinista: colocar na discussão tantas possíveis movimentações — apontando para tantas direções diferentes — que deixa a todos intrigados, o que permite a ele escolher a tática que melhor lhe aprouver segundo a evolução dos acontecimentos.

Ryabkov, por exemplo, afirmou a repórteres que não está dando ultimatos e não previu nenhum tema “inegociável”. Mas ele acrescentou que é “absolutamente imprescindível” que os EUA garantam que a Ucrânia jamais se juntará à Otan.

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Ninguém sabe o que Putin pretende. É assim que ele gosta de jogar, escreve o chefe redação do New York Times em Moscou. O líder russo afirmou que não está impondo nenhum cronograma específico, mas que precisa de uma “resposta rápida” às suas demandas. E ainda que tenha afirmado que “não há razão para temer um cenário de escalada” na Ucrânia, Putin alertou que o Ocidente ainda não conseguiu entender o tamanho do perigo que a rejeição das exigências da Rússia representaria.

As narrativas contraditórias continuaram na terça-feira, quando Peskov, o porta-voz do Kremlin, contradisse qualquer mensagem positiva que Ryabkov pudesse ter expressado no dia anterior. “Por enquanto, não vemos nenhuma razão substantiva para otimismo”, disse ele em sua teleconferência diária com a imprensa.

O problema com a abordagem de Putin é que ela furta os diplomatas russos de flexibilidade para negociar em nome da Rússia e por vezes os deixa em dificuldades para manter uma narrativa coerente. Stanovaya alertou que, mesmo se os diplomatas conseguirem alcançar algum tipo de acordo, autoridades belicosas em Moscou que têm mais atenção de Putin poderiam logo ajudar a dissolver o pacto.

Analistas notaram que Ryabkov, pelo lado diplomático, muito provavelmente nem sabe quais opções militares o Kremlin está considerando. A bolha livre de coronavírus que Putin tem tentado estabelecer em torno de si significou que até mesmo seus confidentes tiveram de passar dias em quarentena antes de poder reunir-se com ele num mesmo recinto, o que diminuiu ainda mais seu contato com o mundo exterior.

Enquanto Ryabkov e outras autoridades russas negam que a Rússia planeje invadir a Ucrânia, o próprio Putin, em duas entrevistas coletivas realizadas em dezembro, não negou essa possibilidade. Em vez disso, ele alertou para uma “resposta técnico-militar” não especificada caso a Rússia não consiga o que quer.

Expansão

Desde a dissolução da União Soviética, mais de uma dúzia de países anteriormente governados por regimes comunistas da Europa Central e do Leste Europeu juntaram-se à Otan. Em 2008, a Otan declarou que as ex-repúblicas soviéticas Geórgia e Ucrânia tornariam-se membros da aliança, apesar de haver pouca chance de que os países se qualifiquem para adesão nos próximos anos.

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“Precisamos de garantias duradouras e vinculantes” que façam retroceder a presença da Otan no Leste Europeu, afirmou Putin em dezembro. Ele acrescentou que, enquanto os EUA abandonaram pactos no passado, “precisamos de algo concreto, pelo menos um acordo vinculante, em vez de meras garantias verbais”.

Ainda que Putin possa ter obtido sucesso em fazer os EUA concordar em negociar — apesar das exigências de Moscou parecerem inviáveis — Stanovaya e outros analistas alertaram que, neste ponto, somente negociações não são suficientes para ele.

Encorajado, Putin vê Biden como um homem disposto ao acordo — e considera que o presidente americano, enquanto veterano da Guerra Fria, pode ter um respeito à diplomacia de força entre Washington e Moscou que não existe nos políticos mais jovens nos EUA.

“Ele assume que os americanos prestarão atenção apenas no que os ameaça concretamente e imediatamente”, afirmou a respeito do presidente russo Dimitri Trenin, diretor do Centro Carnegie de Moscou, um instituto de análise e pensamento. “Ele se vale de imprevisibilidade, tensão e ameaças.”

Até onde os analistas conseguem enxergar, a exigência de que a Otan ofereça algum tipo de garantia formal de que não se expandirá ao leste e cessará sua cooperação com a Ucrânia é o elemento mais importante para Putin. A oferta americana, nas discussões de segunda feira, propondo negociar posicionamentos de mísseis e exercícios militares na Europa, também é de interesse da Rússia, mas Ryabkov indicou que esses temas são uma prioridade menor.

A Otan descartou repetidamente a possibilidade de permitir que qualquer país tenha poder de veto sobre adesões na aliança, criando o que parece ser um impasse. Ainda assim,Lukyanov, o proeminente analista russo, afirmou que o fato de as negociações não terem fracassado imediatamente significa que ambos os lados veem um caminho — atualmente invisível para o mundo exterior — para encontrar um desfecho exequível.

Quanto ao que a Rússia fará a seguir, Lukyanov afirmou que dependerá somente dePutin, que exerce um monopólio em tomadas de decisões de política externa sem precedentes na história recente da Rússia. Ao contrário dos líderes da era soviética,Putin não mantém um “Politburo” de autoridades graduadas que tomam decisões coletivamente.

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Lukyanov afirmou que nenhum indivíduo é visto influenciando Putin diretamente. “Ele recebe informações de toda parte”, afirmou Lukyanov. “Mas quem as fornece não exerce nenhum tipo de influência e não sabe como isso será usado.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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