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Putin e o TPI

Por Adriana Carranca
Atualização:

Pouco se falou sobre o pré-julgamento anteontem no Tribunal Penal Internacional (TPI) de Dominic Ongwen, comandante do sanguinário Exército da Resistência do Senhor, acusado de sequestrar, amputar e matar crianças, escravizar e violentar sexualmente meninas no norte de Uganda. O desinteresse da comunidade internacional pelo flagelo africano explica, em parte, porque a sessão não teve destaque. Outro motivo, de maior peso, é a irrelevância da Corte.

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Vladimir Putin, protagonista do caso de maior repercussão na quinta-feira - o inquérito que o aponta como “provável” responsável pelo assassinato por envenenamento, em 2006, do ex-espião russo Alexander Litvinenko, em Londres - é bom exemplo das limitações que ameaçam a existência do primeiro tribunal penal internacional permanente. Idealizado no rastro da 2.ª Guerra, o TPI foi criado para garantir que não ficassem impunes crimes de guerra e contra a humanidade.

Putin é suspeito de ambos, mas seu governo não pode ser investigado porque não ratificou o Estatuto de Roma, sem o que o TPI não tem jurisdição no país. O Estado poderia pedir ao órgão uma investigação pontual, mas isso é improvável nos casos em que o próprio governo e líderes poderosos, como Putin, estão na mira da Justiça. Outra forma de chegar à Corte é pelo Conselho de Segurança (CS) da ONU - do qual a Rússia é membro permanente e, como tal, tem poder de veto, assim como EUA, China, Grã-Bretanha e França. São também, com Alemanha, os maiores exportadores de armas do mundo. 

As limitações do TPI têm impedido que as guerras recentes mais sangrentas, como Síria e Iraque - países não signatários - sejam investigadas. É improvável que Bashar Assad, seus opositores ou aliados no CS, envolvidos nos conflitos, recorram à Corte. E tudo indica que os responsáveis por ataques químicos, bombardeios contra civis e obstrução da ajuda humanitária a famintos ou os psicopatas do Estado Islâmico jamais chegarão ao banco dos réus.

Julgamentos. Os únicos casos encaminhados pelo CS ao TPI foram Sudão e Líbia. No primeiro, o tribunal pediu em 2009 a prisão do presidente Omar Bashir por crimes no conflito que deixou mais de 300 mil mortos em Darfur. Bashir continua no poder e seus aliados ignoram a decisão. Condenado, ele já fez viagens oficiais a Egito, Arábia Saudita e África do Sul. Na Líbia, o TPI pediu que o filho do ex-ditador Muamar Kadafi, Seif al-Islam, condenado à morte em julho pela Justiça local mesmo estando ausente, fosse extraditado para Haia sob alegação de que não teria julgamento justo no país em guerra civil. Foi ignorado.

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Os casos ilustram o ceticismo em relação ao TPI, acusado de perseguir governos da África. Dos 60 países que ratificaram o Estatuto de Roma, mais da metade (34) são africanos, origem dos 32 indiciados desde que começou a operar em 2002 e palco das 9 investigações em curso - Uganda, República Democrática do Congo, Quênia, Costa do Marfim, Mali e República Centro-Africana, em dois casos, além de Sudão e Líbia.

Após 14 anos, com orçamento anual de US$ 140 milhões, o TPI condenou apenas dois homens: os congoleses Thomas Lubanga e Germain Katanga, que devem deixar a prisão em breve.

A anexação da Crimeia pela Rússia, em março de 2014, e a invasão do leste da Ucrânia violam leis internacionais. O TPI não tem jurisdição no país, mas uma brecha pode levar Putin ao banco dos réus: o governo ucraniano deu à Corte autoridade para apurar crimes do ex-presidente Viktor Yanukovich entre novembro de 2013 e fevereiro de 2014. No ano passado, estendeu o período para incluir o conflito atual. Os juízes de Haia também analisam pedido dos promotores para investigar o conflito entre separatistas de Ossétia do Sul e o governo de Geórgia em 2008. Embora o foco não seja o Kremlin, o inquérito respingaria em tropas russas que apoiaram os separatistas.

Ambos representam um teste para o TPI. Primeiro, porque ampliam o foco além da África. Depois, porque investigar um membro permanente do CS e seu envolvimento em conflitos internacionais atestaria a independência do tribunal - desde que de forma transparente e justa. Também aumentaria a pressão sobre poderosos, dentro e fora do CS, para que ratifiquem o Estatuto de Roma. Só assim a Corte se tornará relevante - é isso ou ser esquecida.

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