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Putin segue cartilha da enigmática Catarina II

Por Jay Winik
Atualização:

Depois de tomar posse de um pedaço do Ártico do tamanho da Europa Ocidental, o Exército russo anunciou seus planos ambiciosos para estabelecer uma presença permanente no Mediterrâneo, pela primeira vez desde o fim da Guerra Fria. Esse ressurgimento é orientado pelo enigmático presidente Vladimir Putin. Enigmático parece ser o termo certo. Putin veste-se muito bem, apesar de reprimir a oposição e minar a democracia. Exibe sorriso caloroso nas cúpulas internacionais enquanto massacra os dissidentes na Chechênia. Encantou George W. Bush ao mesmo tempo em que atacou a política dos EUA no Iraque e no Oriente Médio. A opinião geral é que a experiência de Putin na KGB impulsiona suas ações mais notórias, o que leva os analistas a evocarem o espectro de uma nova Guerra Fria. Mas, se o Ocidente está realmente à beira de um embate com Putin e um Estado russo ressuscitado, seria bom não ver o presidente russo como algo novo, mas sim como uma coisa antiga, recorrendo às raízes históricas que levam ao século 18 e a Catarina, a Grande. É bem provável que Putin e seus aliados, na tentativa de reconduzir a Rússia ao cenário mundial, busquem orientação não apenas dos fantasmas de Stalin e Kruchev - mas também de outros mestres espirituais, como Catarina II. Como Putin, Catarina II era uma pessoa curiosa que fascinava e confundia críticos e partidários. Desde o início, foi o ídolo liberal dos grandes filósofos europeus do Iluminismo. Manteve correspondência com Voltaire, inspirou-se em Montesquieu para governar a Rússia (quase 20 anos antes de os fundadores dos EUA o adotarem), publicou um livro do filósofo francês Claude Helvétius (1715-1771) - quando sua obra era queimada em praça pública em Paris - e subscreveu a Enciclopédia de Diderot quando foi proibida na França. Catarina chegou até a se corresponder com Thomas Jefferson, como também auxiliou a independência dos EUA, por meio da sua Liga da Neutralidade Armada, que, diplomaticamente, isolou a Grã-Bretanha durante a Guerra de Independência americana. O Rei George III tentou aproximar-se primeiro de Catarina para pedir que seus obstinados cossacos o ajudassem a combater George Washington e os colonos pró-independência; ela se recusou. As relações russo-americanas, portanto, datam de muito tempo. Mas, com repercussões inquietantes para o mundo de hoje, a imperatriz precursora do liberalismo tornou-se, em pouco tempo, uma reacionária. Embora John Adams acreditasse que Rússia e EUA seriam aliados naturais, Catarina nem mesmo se dignou a ver o enviado da incipiente nação, Francis Dana. E, quando eclodiu a Revolução Francesa, Catarina renegou décadas de Iluminismo, desencadeando o autoritarismo moderno. A imperatriz reprimiu impiedosamente os intelectuais russos e, antes de convocar seus Exércitos, fez de tudo para destruir a ameaça "democrática" jacobina que emanava da França. "O que sapateiros sabem de governo?", ela vociferou, decidindo que governo representativo não se ajustava a uma nação tão grande como a Rússia. Em seguida, numa outra reviravolta de opinião, ridicularizou abertamente George Washington e condenou a Guerra de Independência americana, que antes confessara admirar. Hoje, a carnificina no Iraque, combinada com a recente aproximação da Rússia com a Síria, faz-nos lembrar como, de maneira tão hábil, Catarina tirou proveito do caos, liderado pela França, que varreu a Europa em 1795. Ela fez de tudo para riscar a Polônia do mapa e repartir suas terras. (Ironicamente, a insurreição polonesa contra a imperatriz foi corajosamente liderada por Thaddeus Kosciuszko, herói da Guerra de Independência Americana.) Catarina avançou muito com o processo de europeização da Rússia: construiu o Hermitage, reuniu uma coleção de arte de classe mundial, melhorou escolas e hospitais e enviou uma multidão de russos que falavam francês para o exterior. Mas ela não fez quase nada para mudar a atitude do russo médio em relação ao que chamava arrogantemente de "Península da Europa". Putin, apesar das sorridentes fotos no Grupo dos Oito, tem caráter muito similar. Ele compara as políticas dos EUA às do Terceiro Reich. E muitos russos jovens, que se previa que fossem os maiores amigos dos EUA no período pós-Guerra Fria, professam abertamente sua profunda hostilidade com Washington. Catarina era cativante, brilhante, enérgica e complexa. Dominou a arena global por três décadas. "Se ela se correspondesse com Deus, exigiria ficar, no mínimo, no mesmo nível", disse certa vez Frederico, o Grande, da Prússia. DUAS FACES Com lições recorrentes para o século 21, Catarina foi mestre em mostrar duas faces para o mundo - uma para os intelectuais iluminados de todas as partes, e outra para seu próprio povo. Não importam seus flertes com Washington, Franklin, Voltaire, Montesquieu - o fato é que, no final, ela acalentou mais a glória da Rússia imperial. Aos 67 anos, Catarina estava certa de que seu legado subsistiria. Escolheu a dedo seu sucessor - seu neto Alexandre. Putin, de modo semelhante, parece ter seus próprios projetos dinásticos, mesmo que sob uma tênue aparência democrática. Ele deverá também escolher a dedo seu sucessor presidencial para 2008, dando a entender que pode candidatar-se novamente em 2012. Então, o que devemos concluir? Seria um grande erro considerar as ações empreendidas pela Rússia como as precursoras de uma nova Guerra Fria. Mas também seria um erro ignorar o fato de que Putin aprendeu muito bem como fazer o mesmo jogo de dissimulação de Catarina. Do mesmo modo que a imperatriz, ele se tornou mestre em mostrar-se um democrata no exterior e, ao mesmo tempo, ser um déspota em seu país. Catarina professava o pacifismo, enquanto defendia a guerra por todo o mundo. Putin age da mesma maneira. E é assim que ele deve ser visto. TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO *Jay Winik, escritor, escreveu esse artigo para o jornal ?The Washington Post?

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