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Putin, um estrategista astuto ou um líder imprudente?

Para alguns analistas, pandemia pode tê-lo deixado mais paranóico, magoado e imprudente; leia a análise

Por Anton Troianovski
Atualização:

MOSCOU - Neste momento de crescimento da crise na Ucrânia, tudo se resume ao tipo de líder que o presidente Vladimir Putin é. Em Moscou, muitos analistas continuam convencidos de que o presidente russo é essencialmente racional e que os riscos de invadir a Ucrânia seriam tão grandes que o enorme acúmulo de tropas só faz sentido como um blefe muito convincente. 

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Mas alguns também deixam a porta aberta para a ideia de que ele mudou fundamentalmente em meio à pandemia, uma mudança que pode tê-lo deixado mais paranóico, mais magoado e mais imprudente.

A mesa de 6 metros de comprimento que Putin usou para se distanciar socialmente este mês de líderes europeus que foram ter conversas diplomnáticas simboliza, para alguns observadores, seu descolamento da realidade do resto do mundo. Por quase dois anos, Putin se escondeu em um casulo livre de coronavírus, diferente de qualquer líder ocidental, com a televisão estatal mostrando-o realizando a maioria das reuniões importantes por teleconferência sozinho em uma sala e mantendo até seus próprios ministros à distância nas raras ocasiões em que ele os convoca pessoalmente.

Os presidentes da Rússia, Vladimir Putin (E), e da França, Emmanuel Macron, se reuniram em uma longa mesa branca em um salão do Kremlin, em 7 de fevereiro Foto: Sputnik, Kremlin Pool Photo via AP

A especulação sobre o estado mental de um líder é sempre preocupante, mas à medida que a importante decisão de Putin se aproxima, analistas baseados em Moscou e conhecedores do dia-a-dia do Kremlin, intrigados com o que ele pode fazer a seguir na Ucrânia, não estão conseguindo fugir da psicologia.

"Há essa impressão de irritação, de falta de interesse, de falta de vontade de se aprofundar em algo novo", disse Ekaterina Schulmann, cientista política e ex-membro do conselho de direitos humanos de Putin, sobre as recentes aparições públicas do presidente. “Está sendo mostrado ao público que ele está em isolamento prático, com cada vez menos pausas, desde a primavera de 2020.”

Uma invasão em larga escala da Ucrânia, muitos analistas apontam, seria uma escalada enorme em comparação com qualquer uma das ações que Putin já tomou antes. Em 2014, o Kremlin ordenou que as forças russas ocupassem a Crimeia sem disparar um único tiro. A guerra por procuração que Putin fomentou no leste da Ucrânia permitiu que ele negasse ser parte do conflito.

“Iniciar uma guerra em grande escala não é do interesse de Putin”, disse Anastasia Likhacheva, reitora de economia mundial e assuntos internacionais da Escola Superior de Economia de Moscou. “É muito difícil para mim encontrar qualquer explicação racional para o desejo de realizar tal campanha.”

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Mesmo que Putin pudesse assumir o controle da Ucrânia, ela observou, tal guerra realizaria o oposto do que o presidente diz querer: reverter a presença da Otan na Europa Oriental. No caso de uma guerra, os aliados da Otan estariam "mais unificados do que nunca", disse Likhacheva, e provavelmente implementariam novos armamentos poderosos ao longo das fronteiras ocidentais da Rússia.

Em casa, Putin sempre desejou projetar a aura de um estadista sóbrio, anulando os incendiários nacionalistas em programas de entrevistas no horário nobre e no Parlamento, que o exortam há anos a anexar a Ucrânia.

E enquanto ele se apresenta como o garantidor da estabilidade da Rússia, ele pode enfrentar uma tempestade econômica com as sanções ocidentais e convulsões sociais se houver baixas no campo de batalha e entre civis. Milhões de russos têm parentes na Ucrânia.

No momento, os russos parecem concordar em grande parte com a narrativa do Kremlin de que o Ocidente é o agressor na crise da Ucrânia, disse Denis Volkov, diretor do Levada Center, um instituto de pesquisa independente em Moscou. As mensagens alarmistas de Washington sobre uma iminente invasão russa apenas reforçam essa visão, diz ele, porque faz com que o Ocidente pareça ser aquele que está “exercendo pressão e aumentando as tensões”.

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Se Putin realizasse uma operação militar curta e limitada nos moldes da guerra de cinco dias contra a Geórgia em 2008, disse ele, os russos poderiam apoiá-la. Mas "se esta for uma guerra longa e sangrenta, chegaremos a uma situação em que é impossível prever", disse Volkov. “A estabilidade acaba.”

Dado que tal guerra ainda parece impensável e irracional para muitos em Moscou, especialistas em política externa russos geralmente veem o impasse sobre a Ucrânia como o último estágio do esforço de um ano de Putin para obrigar o Ocidente a aceitar o que ele vê como preocupações de segurança russas fundamentais.

Na década de 1990, segundo esse pensamento, o Ocidente forçou uma nova ordem europeia sobre uma Rússia fraca que desconsiderava sua necessidade histórica de uma zona geopolítica de amortecimento a seu oeste. E agora que a Rússia está mais forte, dizem esses especialistas, seria razoável que qualquer líder do Kremlin tentasse redesenhar esse mapa.

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Fyodor Lukyanov, um proeminente analista de política externa de Moscou que assessora o Kremlin, disse que o objetivo de Putin agora é "forçar a revisão parcial do resultado da Guerra Fria". Mas ele ainda acredita que Putin vai parar antes de uma invasão em grande escala, usando “meios especiais, assimétricos ou híbridos” – incluindo fazer o Ocidente acreditar que ele está realmente preparado para atacar.

"Um blefe tem que ser muito convincente", disse Lukyanov. E os Estados Unidos, continuou ele, com seus retratos robustos de uma Rússia agressiva pronta para uma invasão, “está jogando 200% a favor de Putin”.

Por essa linha de pensamento, dizem os analistas russos, as autoridades americanas estão se apaixonando por uma imagem exagerada de Putin como um gênio do mal. Como as tentativas anteriores de Putin de negociar com o Ocidente sobre o controle de armas e a expansão da Otan fracassaram, dizem eles, o Kremlin optou por aumentar as apostas a um ponto em que seus interesses se tornaram impossíveis de ignorar.

"Ele é muito bem-sucedido em usar a imagem negativa que foi criada dele como um demônio", disse Dmitri Trenin, chefe do think tank Carnegie Moscow Center, descrevendo Putin como alguém que está capitalizando os temores de que ele estava preparado para desencadear uma guerra horrível. “O plano era criar uma ameaça, criar a sensação de que uma guerra poderia acontecer.”

Mas os especialistas já estavam errados antes. Em 2014, Putin tomou a Crimeia, mesmo quando poucos analistas de Moscou previam uma intervenção militar. E os céticos da visão de que Putin está blefando apontam que, durante a pandemia, ele já tomou medidas que antes pareciam improváveis. 

Sua dura repressão contra a rede de Alexei Navalni, por exemplo, contradiz o que era uma visão amplamente difundida de que Putin estava feliz em permitir alguma dissidência doméstica como uma válvula de escape para administrar o descontentamento.

“Putin, no ano passado, cruzou muitas linhas vermelhas”, disse Michael Kofman, diretor de estudos da Rússia no CNA, um instituto de pesquisa com sede em Arlington, Virgínia, na semana passada. “As pessoas que acreditam que algo tão dramático é improvável podem não ter observado essa mudança qualitativa nos últimos dois anos.”

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