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Quem é a linha dura que assessora Putin sobre a Ucrânia

Três autoridades reacionárias, dedicadas a ‘valores tradicionais’ e à restauração da glória soviética, figurarão proeminentemente na decisão de invadir ou não a Ucrânia

Por Anton Troianovski
Atualização:

MOSCOU — O Ocidente está legalizando casamentos entre pessoas e animais. Os líderes da Ucrânia são tão ruins quanto Hitler, e os nacionalistas do país “não são humanos”. Essas são as visões encontradas no alto escalão que cerca o presidente Vladimir Putin, em meio às mais altas autoridades de segurança russas que poderão se sentar à mesa de negociação, enquanto seu líder decide se lançará ou não uma guerra franca contra a Ucrânia. 

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Em declarações publicadas pelos meios de comunicação russos no ano passado, esses homens poderosos — em grande parte nascidos na União Soviética dos anos 50, como Putin — expuseram posições mais reacionárias até que as do presidente, um sinal de uma linha mais dura da que o Kremlin está adotando à medida que intensifica sua animosidade contra aqueles que enxerga como inimigos domesticamente e no exterior. 

A ascensão das autoridades de segurança à órbita do presidente delineia a evolução de Putin do jovem líder que se mostrava amigável ao Ocidente no início dos anos 2000 — enquanto se cercava de conselheiros que incluíam proeminentes liberais — ao homem que agora ameaça implicitamente iniciar uma grande guerra na Europa. 

Essa história é também de uma luta de anos do Kremlin para forjar uma ideologia para justificar o governo de Putin: que crescentemente se vale da figura do Ocidente como inimigo, da Ucrânia como ameaça e da Rússia como bastião de “valores tradicionais”. 

Presidente Vladimir Putin (E) conversa com seu ministro da Justiça, Konstantin Chuychenko, no Kremlin Foto: Mikhail Metzel, Sputnik, Kremlin Pool Photo via AP

“É uma tentativa de formar coletivamente uma contraideologia, já que Putin não tem ideologia”, afirmou Konstantin Remchukov, editor de um jornal de Moscou ligado ao Kremlin, a respeito do que ele qualificou como uma visão de mundo “conservadora-reacionária” da elite de segurança da Rússia. “O postulado-chave é que todos estão contra a Rússia.” 

Ninguém sabe realmente como Putin toma suas decisões nem quem ele ouve enquanto considera seus próximos passos. O presidente russo, afirma o Kremlin, está analisando as respostas por escrito às demandas de segurança de Moscou entregues pelos Estados Unidos e pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) na semana passada — incluindo a garantia de que a Ucrânia jamais se torne membro da aliança militar.  

Na sexta-feira, o Kremlin afirmou que as respostas do Ocidente não atendiam às maiores preocupações de segurança da Rússia. Mas Putin, por sua vez, tem mantido o silêncio, evitando comentar publicamente o tema da Ucrânia desde dezembro, apesar de aparecer diante de câmeras quase diariamente.

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Isso deixa aos conselheiros linha-dura o papel de oferecer pistas sobre o pensamento do presidente. Alguns deles conhecem Putin desde a época em que trabalharam com ele na KGB soviética e são acusados pelo Ocidente de coordenar assassinatos, operações de influência, ciberespionagem e a belicosidade brutal que ajudaram a afastar o Kremlin da Europa e dos EUA. 

Vladimir Putinparticipavirtualemnte dereunião da Organização de Cooperação de Xangai (SCO) em Dushanbe, Tajiquistão, em setembro de 2021 Foto: Alexei Druzhinin, Sputnik, Kremlin Pool Photo via AP

Putin é conhecido por estimular a retórica anti-Ocidente, mas seu principal conselheiro de segurança, Nikolai Patrushev, abraça essa narrativa com um ardor ainda maior. Putin pinta um quadro em que inimigos dedicam-se a falsear o passado glorioso da Rússia, mas seu chefe de inteligência externa, Serguei Naryshkin, assumiu a luta pela história como prioridade especial. 

Putin adotou uma política de mais envolvimento do Estado na economia, mas seu ministro da Defesa, Serguei Shoigu, levou essa tendência a um extremo, abrindo caminho para um enorme esforço liderado pelo governo para construção de novas cidades da Sibéria. 

“Um tipo de máquina do tempo está nos fazendo retroceder aos piores anos da ocupação de Hitler”, afirmou Naryshkin a respeito da Ucrânia este mês, descrevendo o governo pró-Ocidente do país como uma “verdadeira ditadura”. Ele inaugurava uma exposição em Moscou intitulada “Abusos de direitos humanos na Ucrânia”. 

'Russofobia'

No mês passado, Shoigu afirmou que nacionalistas ucranianos “não são humanos”.Patrushev descreveu a “russofobia” na Ucrânia como fruto da propaganda do Ocidente que remonta aos invejosos escribas europeus que macularam a reputação de Ivan, o Terrível. 

“Não lhes agradou que o czar russo não tenha reconhecido sua liderança política e moral”, afirmou Patrushev a respeito do tirano do século 16 conhecido por sua temida polícia secreta. 

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Agora, à medida que Putin considera quanto elevará suas apostas na Ucrânia, a questão será quanto ele adotará o pensamento conspiratório de seu belicoso alto-escalão. Em Moscou, alguns analistas ainda veem uma linha pragmática em Putin. O líder russo equilibra ameaças e paranoias promovidas por confidentes como Patrushev, afirmam eles, com a percepção mais sóbria de pessoas como o primeiro-ministro Mikhail Mishustin, tecnocrata encarregado de manter a economia nos trilhos. 

“Esses homens são conservadores radicais”, afirmou Remchukov, que em 2018 coordenou a campanha para reeleição do prefeito de Moscou, um ex-chefe de gabinete de Putin. “Pode ser um eixo conservador, mas Putin está no centro.” 

Muitos sinais, contudo, apontam para os “radicais" ganhando terreno. A mudança mais óbvia ocorreu dentro da Rússia, onde o envenenamento do líder opositor Aleksei Navalni, em 2020, foi seguido por uma ampla repressão, no ano passado, contra ativistas, meios de comunicação e até acadêmicos. Autoridades ocidentais disseram que Navalni foi envenenado pelo governo russo, mas Naryshkin, o ex-chefe de inteligência externa, descreveu o envenenamento como uma ação do Ocidente em busca de uma “vítima sacrificial” para ajudar a derrubar Putin. 

Enquanto trabalham para esmagar a dissidência, as autoridades de segurança linha-dura também colocam-se na vanguarda da adoção de “valores tradicionais” da Rússia, como alternativa ao moralmente degradante Ocidente. Um canal de televisão foi multado recentemente por exibir imagens de um homem com cabelos longos e unhas pintadas — “não correspondendo à imagem de um homem com orientação sexual tradicional”. Dois blogueiros foram sentenciados a 10 meses de prisão por conta de uma foto sexualmente sugestiva diante da Catedral de São Basílio. 

“Pais e mães estão sendo renomeados como progenitores número 1 e 2”, afirmouPatrushev numa entrevista em setembro, descrevendo os valores “estrangeiros" do Ocidente. “Eles querem dar a crianças o direito de determinar seu próprio sexo, e em alguns lugares chegaram ao ponto de legalizar casamentos entre pessoas e animais.” 

Putin repetiu a fala de “progenitores número 1 e 2” numa aparição um mês depois, mas não mencionou zoofilia. 

Tanque russo dispara durante exercício militar perto da cidade Rostov, na fronteira com a Ucrânia. Foto: AP

Enquanto tropas russas concentram-se nas proximidades da Ucrânia, outro elemento da ideologia das autoridades de segurança se assoma: a glorificação do passado soviético.Patrushev afirmou que o colapso da União Soviética “deu total liberdade à elite neoliberal do Ocidente”, permitindo-a impor seus valores não tradicionais ao mundo. Ele e seus colegas classificam a Rússia como um país destinado a reconquistar aquele status de bastião contra o Ocidente, com a Ucrânia e outras ex-repúblicas soviéticas sob sua legítima esfera de influência. 

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“Esta é uma das mais obscuras correntes do nacionalismo russo, multiplicada pelo imperialismo”, afirmou Andrei Kolesnikov, pesquisador-sênior do Centro Carnegie Moscou, um instituto de análise. O objetivo da elite das autoridades de segurança russas, afirmou ele, é “a restauração do império”. 

O próprio Putin já descreveu o colapso da União Soviética como uma “catástrofe geopolítica”. Mas ele também costumava pedir conselho a variadas autoridades, incluindo com pontos de vista mais liberais. Agora, esses funcionários foram em grande parte afastados do governo, enquanto tecnocratas, como Mishustin, quase nunca falam publicamente de assuntos além de suas áreas imediatas de responsabilidade. 

Resta, então, a elite das autoridades de segurança conhecida coletivamente como “siloviki”; muitos de seus membros — como Patrushev, Naryshkin e Aleksandr Bortnikov, o chefe de espionagem doméstica da Rússia — ex-colegas de Putin na KGB. 

Sua influência se estende para muito além das questões de segurança: Patrushev, um jogador de vôlei contumaz, dirige a Federação Russa de Vôlei, e o filho dele é ministro da Agricultura. Naryshkin coordena a Sociedade Histórica Russa, ajudando a liderar a glorificação — e, dizem os críticos, o acobertamento — do passado russo. Shoigu, o ministro da Defesa, atende ao interesse de Putin em atividades ao ar livre como presidente da Sociedade Geográfica Russa e com frequência leva o presidente para férias em florestas da Sibéria.

Para essas autoridades, afirmam analistas, tensões crescentes com o Ocidente são uma coisa boa, que aumenta sua influência sobre a elite no poder.  “A escalada de confrontações e sanções não assusta os siloviki; pelo contrário, lhes abre mais oportunidades”, escreveu recentemente Tatiana Stanovaya, fundadora da firma de análise política R. Politik.

Aos analistas russos resta imaginar se Putin ainda possui percepções pragmáticas suficientes para evitar uma guerra franca na Ucrânia. O fechamento no mês passado, pelo governo russo, do Memorial International — um grupo de defesa de direitos humanos com base em Moscou que enfurecia havia muito tempo o establishment de segurança do país por revelar crimes da polícia secreta soviética — marcou mais uma aproximação de Putin às visões dos siloviki.

Mas sanções do Ocidente sobre uma incursão na Ucrânia poderiam surtir consequências amplas, conforme demonstrou a queda do mercado de ações da Rússia em meio aos temores de guerra, nas últimas semanas. E baixas militares poderiam surtir efeitos colaterais imprevisíveis na política doméstica e manchar o legado de Putin. 

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“Se houver guerra contra a Ucrânia e mortes fratricidas, Putin será lembrado somente por isso”, afirmou Remchukov, o editor de jornal. “É impossível ele não entender o tamanho desse pecado.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO