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Reconstruir de maneira diferente

Os doadores têm de atuar com os governantes para que as reais necessidades do país devastado e seu povo sejam atendidas de forma adequada

Por DUNCAN MARU & e SENENDRA UPRETY
Atualização:

Nossas vidas foram divididas em antes e depois. Todos sabíamos que o momento viria, mas quando ele finalmente chegou, de algum modo, ainda parecia impossível. O terremoto é o maior teste para a jovem democracia do Nepal afligido pela pobreza desde o fim da guerra civil em 2006. A resposta local e global a essa tragédia foi rápida e compassiva - e esperamos que ela possa aliviar boa parte do sofrimento imediato.Agora, será preciso uma enorme quantidade de ajuda financeira para salvar vidas, manter pessoas em abrigos seguros e evitar doenças epidêmicas. A um custo provavelmente superior a US$ 5 bilhões num país cujo PIB é de US$ 20 bilhões, boa parte desse financiamento terá de vir de fora. É o "como" e o "quê" dessa ajuda, não a quantidade, que determinarão seu impacto.A frase que guiou a resposta ao tsunami de 2004 no Oceano Índico - "reconstruir melhor" - tornou-se lugar comum em esforços semelhantes de recuperação. A ideia é usar uma crise aguda para enfrentar problemas e injustiças crônicos. Por mais trágica que a catástrofe no Nepal tenha sido, não devemos esquecer as mortes e incapacitações evitáveis, a instabilidade das moradias e a insegurança alimentar no país. Semana após semana, mais de 450 bebês morrem desnecessariamente. A cada ano, deslizamentos de terra matam mais de 300 pessoas. A marcha da morte dessas tragédias diárias prossegue.Aliás, enquanto os socorristas atendem às vítimas do terremoto, trabalhadores da saúde pública precisam lidar com a falta de recursos. Os US$ 18 anuais per capita gastos no sistema de saúde pública são insuficientes, por qualquer padrão razoável, para atender às necessidades da população. Isso era verdade antes do terremoto, e obrigou hospitais e clínicas do governo a tomar uma decisão deplorável: os trabalhadores da saúde deveriam viajar para Katmandu para se unir ao esforço humanitário? Se o fizerem, quem tratará os doentes que comparecem todos os dias em grandes números vindos de toda zona rural do Nepal? Trata-se de um jogo de compensação que nenhum governo deveria ter de fazer. O Haiti deveria servir de exemplo sobre as promessas e armadilhas da ajuda externa. Nos primeiros dois anos após o terremoto de 2010, entraram mais de US$ 6 bilhões de auxílio internacional. Mas o governo haitiano foi em grande parte ignorado e a ajuda resultou num sistema paralelo dominado por organizações estrangeiras. Os haitianos foram marginalizados e a reconstrução de instituições duradouras foi limitada. "Reconstruir melhor" veio a significar reconstruir de uma maneira ditada por interesses internacionais.Preferimos uma expressão inspirada na ex-parlamentar de Massachusetts, Marie St. Fleur: "Reconstruir de maneira diferente". Num discurso dois meses depois do abalo, Marie implorou à comunidade internacional que trabalhasse por intermédio do governo para assegurar que os fundos fossem usados principalmente por haitianos. Suas palavras passaram despercebidas.Erros como esse foram cometidos repetidamente. As instituições democráticas e o povo constituem a maior esperança de reconstrução de qualquer país. O governo do Nepal tem tanto o direito como a responsabilidade de cuidar de seus cidadãos e protegê-los, particularmente os mais vulneráveis. E seus cidadãos têm o direito de cobrar a responsabilidade de seu governo.Isso pode ser uma pílula amarga para muitos doadores engolirem. A confiança num governo em necessidade pode ser baixa, mas um governo independente e capaz é o único caminho para efetivamente reconstruir de maneira diferente. Se os doadores têm legítimas preocupações com governança, eles podem enfrentá-las trabalhando com a sociedade civil para melhorar a prestação de contas. Mas que não atuem à revelia do governo. As instituições democráticas e suas possibilidades - sistemas de saúde ágeis, sistemas eficazes de resposta a desastres, boas estradas, códigos de edificação aplicáveis - requerem tempo e investimento. Só poderemos vislumbrar um futuro assim no Nepal se os esforços de ajuda e recuperação foram usados para fortalecer o governo, não solapá-lo.Isso pode ser feito. Após o terremoto de 2001 em Gujarat, na Índia, setor privado, governo e comunidades locais se uniram para causar um efeito transformador. Apesar de haver uma resposta global substancial ao desastre, boa parte do crédito pelos êxitos vai para os atores nacionais, estaduais e locais que reconstruíram de modo diferente. Isso incluiu casas resistentes a terremotos projetadas e construídas por moradores locais, além de investimentos em escolas, clínicas, estradas e infraestrutura de telecomunicações, que criaram empregos.Há motivos para acreditar que o Nepal prosseguirá mais como a Índia em 2001 do que como o Haiti em 2010. Nos primeiros momentos, confusão, frustração e estresse dominaram a comunicação. Uma semana depois, graças à visão de autoridades do governo, consultores técnicos da sociedade civil e parceiros externos de desenvolvimento, um sistema eletrônico básico de mapeamento e rastreamento estava criado. Isso melhorou a resposta imediata e fortaleceu a capacidade do ministério de enfrentar, no longo prazo, necessidades agudas e crônicas de recursos humanos, comunicações e cadeia de suprimentos.No momento em que caminhamos da ajuda para a reconstrução no Nepal, as dificuldades só aumentarão. Poderemos canalizar a maior parte da ajuda via governo para empregar nepaleses, financiar casas resistentes e realmente reconstruir de maneira diferente? Acreditamos que o Nepal sairá da crise com um governo mais forte e comunidades mais resistentes às devastações tanto de terremotos como da pobreza. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIKMARU É INSTRUTOR DE MEDICINA NA HARVARD MEDICAL SCHOOL. UPRETY É DIRETOR GERAL DO DEPARTAMENTO DE SERVIÇOS DE SAÚDE DO NEPALArtigo

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