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Reduto de Evo quer livrar-se de Santa Cruz

Distrito miserável de capital autonomista reivindica independência de ?região elitista?

Por Ruth Costas
Atualização:

O curto trajeto de seis ou sete quilômetros que separa a rica cidade boliviana de Santa Cruz do bairro periférico chamado Plano 3.000 equivale a uma viagem ao longínquo altiplano do país. Na maior parte do Plano 3.000 não há água, luz, ou saneamento básico. No total, 60% da população vive na pobreza e os outros 40%, na miséria. As ruas asfaltadas são apenas duas, uma delas levando a um amplo mercado a céu aberto onde se vende desde CDs piratas até carne de lhama - exposta por horas num balcão de madeira apesar do calor de 30 graus das terras baixas bolivianas nessa época do ano. Todo o resto são caminhos enlameados e casebres precários, construídos na medida em que chegavam ao local imensas levas de bolivianos de todas as partes do país. "Viva a soberania indígena", diz a mensagem no muro, que recebe os visitantes. A semelhança com a próspera Santa Cruz, repleta de edifícios e casarões arejados dos empresários do setor petrolífero e agroindústria, restringe-se às altas temperaturas e à umidade, em contraposição ao clima frio e seco de La Paz. Não é difícil entender, portanto, porque o Plano 3.000 se tornou um dos principais redutos do presidente Evo Morales nos departamentos opositores do Oriente boliviano e um trunfo estratégico em tempos de alta tensão entre as "duas Bolívias" - a andina e a das terras baixas. Sempre que as elites políticas e econômicas de Santa Cruz convocam greve geral contra o governo, os 200 mil habitantes dessa cidade-satélite trabalham normalmente. Na sexta-feira, quando Santa Cruz preparava um protesto pedindo mais autonomia de La Paz, no Plano 3.000 planejava-se comemorar a entrega ao Congresso do projeto para uma nova Constituição, elaborado pelo partido governista Movimento ao Socialismo (MAS), de Evo. Na véspera, cooperativas, microempresas e associações profissionais do Plano 3.000 anunciaram que pretendem se tornar independentes de Santa Cruz, pleiteando sua autonomia "municipal" conforme previsto na nova Carta. "Queremos deixar de fazer parte do centro da cidade porque não apoiamos as elites econômicas e políticas de Santa Cruz, nem sua tentativa de impor unilateralmente uma autonomia de fato ao governo central", disse ao Estado o presidente do Comitê Cívico Popular do Plano 3.000, Jaime Choque. "Além disso, com essa medida poderemos receber mais recursos para fazer obras públicas, construindo escolas, ruas e praças tão agradáveis quanto as que existem em Santa Cruz." A decepção com os líderes regionais é grande. "O governador, Rubén Costas, e o líder do Comitê Cívico de Santa Cruz, Branko Marinkovic, que hoje estão brigando com o governo, nunca colocaram os pés aqui", diz Felicidad de Conde, que tem um açougue no mercado central do Plano 3.000. Mestiça, ela nasceu em La Paz. "Já o Evo está distribuindo dinheiro para as crianças e os idosos", completa. Felicidad refere-se aos projetos sociais promovidos pelo presidente. O chamado "Bônus Juancito Pinto" (o nome é uma homenagem a um menino de 12 anos que morreu lutando na Guerra do Pacífico contra o Chile) prevê o pagamento de 200 bolivianos (cerca de R$ 50) por ano para mais de 1 milhão de crianças em escolas públicas do ensino fundamental. Já o "Renda Dignidade", que ainda não começou a ser aplicado, pagará 1.400 bolivianos (cerca de R$ 350) anuais a todos os bolivianos com mais de 60 anos. Como Evo quer tirar esses recursos justamente da parcela do imposto sobre os hidrocarbonetos que hoje é repassada aos departamentos (Estados), os líderes cívicos e políticos de Santa Cruz estão em pé de guerra contra o Renda Dignidade. No Plano 3.000, milhares de pessoas já estão na expectativa de beneficiar-se do projeto. "Minhas vendas com certeza aumentarão muito", prevê Felicidad. Outro motivo do apoio a Evo é que boa parte dos habitantes dessa cidade-satélite vem de fora de Santa Cruz. Há duas décadas, quando começou a receber famílias desalojadas por causa de uma inundação do Rio Piraí, a região era povoada apenas por algumas centenas de cidadãos locais. Hoje, muitos são indígenas, como o presidente, em contraposição às elites brancas de Santa Cruz."Com a tensão aumentando, os moradores daqui sentem-se ameaçados quando caminham pelo centro da cidade", explica Flora Silva, costureira de 45 anos e vice-presidente da Associação do Mercado Central do Plano 3.000. Na terça-feira, um aimará que fotografava uma greve de fome anti-Evo foi espancado por jovens que apóiam a demanda por mais autonomia. A acusação era a de que ele era um infiltrado. Tudo foi gravado pela TV. No dia seguinte, o presidente da principal associação de bairro do Plano 3.000, Nicanor Muñoz, denunciou que sua casa foi atacada com dinamite por supostos membros da União Juvenil Crucenha, ligada ao Comitê Cívico de Santa Cruz. "Por isso é que aqui há muita gente disposta a lutar ao lado do presidente contra esses líderes locais", diz Flora. "A autonomia que Santa Cruz quer é elitista e excludente, nós preferimos continuar sendo só bolivianos." No entanto, outros moradores preferem não se envolver na disputa. "A verdade é que muitos de nós estão mais preocupados em ganhar nosso suado pão do dia", diz Juan Solo, ex-camponês da região de Potosí que hoje se dedica à venda de CDs no Plano 3.000. "O melhor seria que tanto a oposição quanto o governo conseguissem sentar para negociar para resolver as tensões envolvendo a demanda por mais autonomia sem ameaçar o pouco que estamos conseguindo construir com tanto trabalho."

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