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Referendo decide sobre socialismo indígena de Evo

Projeto de Constituição levado a consulta popular consolida planos do presidente de ?refundar a Bolívia?

Por Ruth Costas
Atualização:

Pode parecer só mais um capítulo da longa guerra entre o governo de Evo Morales e a oposição regional, mas o referendo constitucional que ocorre hoje na Bolívia é bem mais do que isso. O que está em jogo é o modelo socialista-indigenista de país que Evo prometeu implementar quando chegou ao poder, em 2005. Se a nova Constituição for aprovada - e as pesquisas indicam que mais de 60% dos bolivianos estão dispostos a votar pelo "sim" - , Evo pretende usá-la para "refundar a Bolívia". "Esse processo de mudança não tem volta", disse o presidente, após a convocação do referendo. "A Bolívia não retornará ao neoliberalismo." Os 411 artigos da nova Carta ampliam o controle do Estado sobre a economia e expandem direitos (ou privilégios, segundo algumas interpretações) das populações indígenas. Eles dão mais autonomia para os Departamentos (estados), que poderão ter legislativos locais, mas passam longe de satisfazer as exigências da oposição de Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija ao manter o controle da política fiscal, de segurança e energética nas mãos de La Paz. Também há polêmica de sobra. Só para mencionar algumas: a nova Carta limita os latifúndios e prevê que os 36 povos indígenas originários bolivianos (uma minoria que não faz parte das duas grandes etnias do país, o quíchua e o aimara) poderão ter sistemas de Justiça próprios. A oposição regional pode até tentar, como vem ameaçando, se recusar a aplicar a nova Carta caso o "não" vença em seus Departamentos. - decisão que desataria um novo conflito aberto com o governo de consequências imprevisíveis. Mas de qualquer forma, se for de fato aprovada em votação nacional, a Carta deve mudar radicalmente as instituições bolivianas e o modo como o Estado se relaciona com o setor privado. "As empresas estrangeiras, por exemplo, terão problemas para remeter lucros para seus países de origem, porque a nova legislação exige que eles sejam reinvestidos na Bolívia", diz o economista e cientista político Gonzalo Chávez, da Universidade Católica da Bolívia. "Ela também prevê que o Estado boliviano não aceitará arbitragem internacional. Quem investir no país só poderá apelar para a Justiça local." Segundo o analista, 70% da população boliviana desconhece o conteúdo da proposta. A conclusão é de que a popularidade de Evo é o que impulsiona o voto pelo "sim". Em julho, o presidente venceu um referendo sobre a revogação de seu mandato com 67% dos votos. Num país em que 80% da população é formada por indígenas e mestiços que nunca se viram representados pelos governos de elite branca, dá para entender por que o projeto de Evo tem tanto apelo. "Outro fator que ajuda o presidente é a divisão da oposição", afirma o cientista político Carlos Cordeiro, lembrando que as regiões opositoras ficaram isoladas quando a oposição política, liderada pelo partido Podemos, chegou a um acordo com o governo no Congresso para convocar o referendo. Na ocasião, o texto da Carta foi flexibilizado. "Se o texto original fosse a referendo, teríamos uma guerra civil", diz Cordeiro. ELEIÇÕES GERAIS Caso o novo projeto seja aprovado, eleições gerais devem ser convocadas para dezembro. "Não temos dúvida que, depois de reeleito, Evo tentará modificar o projeto dessa Carta, que prevê só dois mandatos para presidente, para continuar no poder, como o venezuelano Hugo Chávez", disse ao Estado o presidente do Senado boliviano, Oscar Ortiz, de Santa Cruz. Nas últimas semanas, a oposição regional ampliou a campanha pelo "não", reforçada por movimentos civis e igrejas evangélicas (leia ao lado). Com isso, avançou nas pesquisas, obrigando Evo, que previa uma vitória com 80%, a moderar os discursos triunfalistas. Segundo a oposição, é o caráter segregacionista da proposta do presidente que vem lhe tirando votos. Evo defende sua Carta como um instrumento para compensar os anos de injustiça contra os índios bolivianos. "O maior risco é que essa Constituição aprofunde a polarização política e as divisões entre a Bolívia indígena e andina e as populações do oriente do país", diz Cordeiro. Para ele, para desarmar a tensão, Evo precisaria adotar uma postura mais moderada e gestos conciliatórios: "Ele devia seguir os conselhos do presidente Lula - que apesar das origens operárias governa para todos os brasileiros - e não os de Chávez."

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