Separação da UE: Reino Unido ruma para o desconhecido

O Brexit será concluído de qualquer maneira. O que acontece depois? Poucos parecem se importar

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Por Steven Erlanger
Atualização:

O Reino Unido passou por sua quinta grande eleição em cinco anos: três eleições gerais e dois plebiscitos, um sobre independência escocesa e outro sobre Brexit. A vitória do Brexit, em junho de 2016, afetou a integridade da política britânica, causando estragos nos partidos tradicionais

Britânicos participam do Carnaval de Somerset, uma das antigas tradições do país, que eles acreditam estar em risco com a imigração de cidadãos da União Europeia Foto: Andrew Testa / The New York Times

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A situação alimentou novas divisões na sociedade e um severo nacionalismo inglês que ameaça o futuro do reino, com a Escócia e a Irlanda do Norte profundamente preocupadas em deixar a União Europeia e em dúvida quanto ao futuro brilhante e radiante que os defensores do Brexit profetizaram.

O mais bizarro é que a maioria dos britânicos agora pensa que teria sido melhor permanecer na UE. Mas a maioria, segundo pesquisas, também acredita que os resultados do plebiscito do Brexit devem ser respeitados. Depois de se manifestar uma vez, há três anos e meio, eles querem que os políticos respeitem seu voto, mesmo que agora acreditem que foi um erro.

Os britânicos estão exaustos e eles tiveram o que muitos consideram uma escolha ruim entre Boris Johnson, um conservador de classe alta com uma longa reputação de mentiroso, e Jeremy Corbyn, um socialista envelhecido e impopular. O Reino Unido está ansioso, as lealdades tradicionais se rompendo, à beira de uma transição para o desconhecido

A rainha Elizabeth II resiste, aos 95 anos, e seu herdeiro, Charles, o príncipe de Gales, está se ajustando agora a um trabalho para o qual ele nasceu, há 71 anos, idade em que a maioria das pessoas já se aposentou. Portanto, o slogan inteligente de Johnson cria o clima: “Conclua o Brexit”. Ponha um fim ao impasse e às brigas. Tente tornar atraente algo que não é. Claro, isso iniciará outra rodada de tediosas negociações sobre comércio, mas o Brexit será concluído, figurativamente, de qualquer maneira. O que acontece depois? Poucos parecem se importar. 

Andrew Testa, que tirou essas fotografias em uma longa turnê pelo Reino Unido, resume o estado de espírito do país. Os que votaram pelo Brexit tinham muitos motivos: soberania britânica, nacionalismo inglês, burocracia europeia, influência alemã e francesa em Bruxelas e o temor de que muitos imigrantes estrangeiros alterassem as identidades nacional e regional.

Academia amadora de boxe, fundada em 1999 por ex-metalúrgico Foto: Andrew Testa / The New York Times

O Carnaval de Somerset é uma das antigas tradições que os britânicos acreditam estar em risco com a mudança demográfica, com a imigração de trabalhadores de partes mais pobres da UE. O surgimento de bairros de poloneses, com tensões nas escolas e serviços de saúde, deram vitória ao Brexit em Lincolnshire. Os imigrantes também criaram concorrência por trabalho. Assim, mesmo em áreas com poucos imigrantes, os britânicos que perderam seus empregos nas indústrias culpam os estrangeiros por seus problemas. Após o Brexit, o governo pode restringir ainda mais o número de pessoas autorizadas a trabalhar e viver no Reino Unido. Isso preocupa algumas empresas, especialmente fazendas, cafeterias, hotéis e restaurantes, em razão da falta de mão de obra.

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Alguns dos que votaram no Brexit mudaram de opinião, observando algumas das consequências, especialmente no comércio com o continente, o maior mercado do Reino Unido. Muitos produtos estarão sujeitos a tarifas e atrasos na entrega, e alguns subsídios da UE, especialmente para a agricultura, desaparecerão. 

John Gray, agricultor de produtos orgânicos, acha que sua filha Rebecca, de 14 anos, poderá substituí-lo a tempo. Mas ele se preocupa em deixar o mercado único europeu e o que isso significa para seus produtos. Outros em Northumberland, como criadores de ovelhas, também se arrependem do voto no Brexit. Irritados com a papelada da Europa, eles agora enfrentam a possibilidade de perder completamente os subsídios. E depois haverá a burocracia para os regulamentos alfandegários e de saúde, se eles quiserem continuar exportando seus produtos.

Os laços com a Europa danificaram os laços com a comunidade britânica. Os defensores do Brexit preveem novos laços comerciais com as ex-colônias, incluindo os EUA, o que compensaria a perda do comércio europeu. Alguns britânicos de ascendência indiana e paquistanesa votaram no Brexit para limitar o número de europeus que poderiam ir para o Reino Unido trabalhar e viver, pensando que haveria mais espaço para imigrantes da Ásia.

Um dos pontos-chave para a conclusão do Brexit será a fronteira entre a Irlanda do Norte e a Irlanda. “Nenhuma fronteira na ilha da Irlanda” foi uma das grandes realizações do Acordo da Sexta-Feira Santa, de 1998, que trouxe paz à ilha. Ele criou um governo descentralizado na Irlanda do Norte e desarmou paramilitares de ambos os lados – republicanos, que pediam a reunificação da Irlanda, e unionistas que defendiam lealdade ao Reino Unido.

Ato pró-Brexit reúne britânicos que temem o fim das tradições Foto: Andrew Testa / The New York Times

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O pacto removeu postos fronteiriços entre norte e sul, permitindo liberdade de movimento e comércio, semelhante à queda do Muro de Berlim. Mas, agora, o plano de Johnson para o Brexit ameaça essa paz, ao manter a Irlanda do Norte na órbita econômica da UE, separando-a do restante do Reino Unido – algo que os unionistas consideram uma “traição” histórica. Essas fotos mostram a vida ao longo da fronteira que ninguém quer reconstruir. As pessoas estão cansadas das disputas e muitas estão cansadas de estar à mercê de políticos distantes, em Londres, muitos dos quais consideram a Irlanda do Norte um incômodo que ficou para trás.

As paixões, a raiva e a toxicidade evocadas pelo Brexit foram mais visíveis nas manifestações à frente do Parlamento, onde os mais exaltados se reúnem com bandeiras, alto-falantes e cartazes. É aqui que as câmeras de TV aparecem. É uma forma de democracia na era televisiva, mas dificilmente melhora a qualidade do debate.

A bolha de Londres também é sagrada e pode girar com muita frequência em torno da Inglaterra, do comércio e dos interesses financeiros da capital britânica. Essas coisas são importantes – 80% da economia britânica depende do setor de serviços, não da indústria ou da agricultura. Mas o debate dentro da bolha de Londres muitas vezes se perde em cansaço e na raiva das três outras nações do reino – Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte. Apenas Gales votou pelo Brexit, que despertou movimentos de independência em cada uma delas.

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A Inglaterra responde por cerca de 84% da população do Reino Unido e possui a maior parte da riqueza. Portanto, há ressentimento das outras nações, que têm as próprias histórias e assembleias autônomas, mas muitas vezes se sentem tratadas com indulgência por Londres.

Esse sentimento é forte na Escócia, com cerca de 8% da população, que é governada por um partido separatista, o Partido Nacional Escocês (SNP). Mesmo em Gales, que tem uma ligação muito mais estreita com a Inglaterra e tem apenas cerca de 5% da população, há entusiasmo pela independência.

A história importa. Todo país vive segundo suas tribos, mitos e glórias passadas. O Reino Unido não é diferente. Um dos principais motivadores do Brexit é o antigo senso de separação do Reino Unido do continente, separado pelo Canal da Mancha, com apenas 34 quilômetros de extensão em seu ponto mais estreito. Afinal, o Túnel da Mancha acaba de celebrar seu 25.º aniversário. O império britânico também era, em grande parte, não europeu, e o Reino Unido, é claro, estava do lado vencedor da 2.ª Guerra. Os britânicos lutaram bravamente contra os nazistas e nunca foram ocupados, e aguentaram o tempo suficiente para que os EUA entrassem na guerra e para que a União Soviética derrotasse a Alemanha.

Barbeariana Irlanda do Norte, que pode ficar na UE Foto: Andrew Testa / The New York Times

As baterias e estações de radar do litoral podem estar desmoronando ao longo da costa britânica, mas o orgulho da vitória sobre o fascismo, especialmente frente a uma Europa Continental conquistada e ocupada, continua sendo uma linha vital na identidade britânica. O ex-presidente francês, Charles de Gaulle, encarava o Reino Unido como diferente, uma nação insular marítima, e vetou seu pedido de adesão à então Comunidade Econômica Europeia, em 1963 e em 1967. O Reino Unido finalmente se uniu, em 1.º de janeiro de 1973, após a morte de De Gaulle. Agora, 47 anos depois, se prepara para sair e um novo capítulo se abre na história da ilha. / Tradução de Claudia Bozzo

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