''''Rejeitamos reformas cosméticas''''

ENTREVISTA: Oswaldo Payá: dissidente cubano

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Por Roberto Lameirinhas e HAVANA
Atualização:

Oswaldo Payá, de 56 anos, é hoje um dos dissidentes cubanos mais conhecidos e respeitados no exterior. Em 2004, utilizando uma brecha da Constituição cubana, conseguiu assinaturas suficientes para enviar à Assembléia Nacional um projeto de realização de um referendo sobre reformas políticas e de abertura do regime. Previsivelmente, o projeto foi engavetado pelo Legislativo e, em reação a ele, o líder Fidel Castro fez aprovar uma lei que declarou "irrevogável" o regime comunista do país. Mas a publicidade em torno da proposta levou a Cuba, para uma viagem histórica, o ex-presidente americano Jimmy Carter. Durante a visita, na qual lhe foi permitido fazer um pronunciamento sem precedentes pela TV cubana, Carter encontrou-se com Payá e declarou publicamente o apoio à sua iniciativa parlamentar, que ganhou o nome de Projeto Varela. Na sexta-feira à noite, ainda sob o impacto do anúncio da renúncia de Fidel, três dias antes, Payá recebeu em sua casa - no distante e empobrecido município Cerro, na periferia de Havana - a reportagem do Estado e concedeu a seguinte entrevista. O sr. acredita que o anúncio da semana passada de Fidel Castro, de que deixa o principal posto do governo cubano, abre algum espaço para o otimismo em relação à adoção de reformas? Há espaço para otimismo porque a saída de Fidel marca o término de uma etapa e o início de outra. Marca um governo que se esgota. Há espaço para otimismo não porque o governo se disponha a mudar, mas porque o povo cubano está vibrando por mudanças. Tudo o que eu espero é que as pessoas do governo não batam a porta no nariz do futuro. O que pedimos não é poder, mas direitos. O que explicaria a relativa apatia com que a população de Cuba recebeu a notícia? O período em que vivemos traz uma lição da vida e da história. Em circunstâncias normais, em qualquer país do mundo, a saída de cena de um governante que esteve no poder por praticamente 50 anos causaria uma grande comoção. Mas, em Cuba, como vocês do Estado puderam ver, não houve nenhuma grande reação. O anúncio da decisão de Fidel foi importante porque, até aqui, havia uma incerteza muito grande sobre se ele continuaria ou não no poder. O silêncio das ruas não é só reflexo dessa incerteza, mas indica também o quanto a população se sente reprimida e intimidada, ainda que seja para lamentar o afastamento de Fidel. Diante da surpresa do anúncio, não houve clareza sobre a forma como a população deveria reagir. No íntimo, o povo cubano quer uma mudança real, dos corações e mentes de seus governantes e de seus amigos, vizinhos, parentes, etc. O senhor acredita numa mudança de cultura do povo cubano? Essa mudança de cultura é possível, embora não tenha a liberdade de manifestar-se livremente sobre esse tema. Você deve ter notado uma certa apatia pelas ruas, mas isso se explica pelo fato de que os cubanos simplesmente não se sentem à vontade para expressar o que realmente sentem. É preciso que entendamos algo muito claramente. O lema do regime cubano é na verdade uma sentença: "Socialismo ou morte." Bem, creio que isso diz tudo. Diante disso, cabe a cada um escolher a alternativa que lhe convier. O lema de nosso movimento, diferentemente do que se apresenta é "liberdade e vida". A isso acrescento a palavra "fraternidade". O sr. acredita que os escolhidos para dirigir o país na reunião da Assembléia Nacional deste domingo estarão dispostos a promover essas reformas? Veja bem, diante de tudo o que se vê hoje no país, os sucessores de Fidel - sejam eles quem for - têm a obrigação moral de abrir horizontes que favoreçam as reformas e de não se sentirem no direito de se apropriarem do país. Mudanças são possíveis e factíveis. Temos como regra colocar a esperança em Deus e no povo cubano. As reformas são possíveis e abre-se para elas uma janela de oportunidade. Nosso movimento é, antes de tudo, humanista e de nenhuma maneira desqualificamos de imediato a gente que está hoje no governo. Sabemos que a capacidade política para liderar um processo de reformas eles têm. Queira Deus que tenham também a vontade política de levar essas mudanças adiante. Como os sucessores de Fidel devem agir? O que eles não poderão fazer é acreditar que são os únicos capazes de empreender esse processo de reforma. E, se quiserem demonstrar ao povo sua vontade de liderar as mudanças, terão primeiro de libertar os presos políticos. Depois, estarão moralmente obrigados a garantir a liberdade de expressão, de reunião, de os trabalhadores se organizarem em sindicatos - algo que Lula (o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva) não cobrou de Fidel quando esteve aqui, em janeiro. Há diferenças substanciais entre os três favoritos ao cargo de presidente do Conselho de Estado, Raúl Castro, Carlos Lage e Felipe Pérez Roque? Não importa quem seja o sucessor de Fidel, ele terá de mudar as leis para garantir os direitos dos cidadãos. A sociedade cubana não aceitará uma mudança apenas cosmética, que apenas disfarce a situação atual. Cuba passa por um período de 50 anos de totalitarismo e não nos interessa agora o "socialismo bonzinho". Queremos a liberdade sem reduções ou relativismos. O sr. tem detectado algum sinal de que os cubanos poderão reagir, caso o regime resista a adotar mudanças? Não. Os cubanos, pela própria natureza não têm o que se costuma chamar de ódio de classes. Mas há um grupo que se encastelou no poder há quase 50 anos. Há muito tempo, esse grupo defende seus próprios interesses e mantém sua sede de poder com uma arrogância poucas vezes vista na história da humanidade. E essa arrogância se dá em nome da soberania nacional e da independência. Os membros desse grupo baseiam-se na tese de que qualquer sinal de debilidade do regime favoreceria a agressão estrangeira e o retorno do país a uma situação de submissão a interesses internacionais. Essa é parte importante da política de terror e medo que diariamente o regime incute na sociedade cubana. E isso se repete há muitas décadas. É uma estratégia muito bem planejada que leva a concluir que a oposição ao governo significa automaticamente opor-se à liberdade do próprio país. Essa estratégia, aos poucos, vem sendo percebida pelos cubanos, que já há algum tempo sentem-se fraudados. Nós reconhecemos que esse grupo que está no poder há tanto tempo obteve conquistas importantes em termos sociais. De nenhuma maneira queremos perder essas conquistas. Mas necessitamos também de liberdade, de manter nosso direito a ter direitos. Queremos a manutenção do sistema que nos permite ter saúde e educação gratuitas. E queremos também o restante: liberdade de expressão, de reunião, religiosa, imprensa livre, etc. Mas os sinais de descontentamento ainda são frágeis e tímidos... Cuba, ao contrário do que se registrou no imaginário do restante do mundo, tem uma sociedade plural. Aqui, temos uma diversidade de posições, de expectativas, de opiniões. Há muitos que discordam das ações do governo, há os que acatam cegamente as orientações do regime e se sentem identificados ideológica e historicamente com essa experiência marxista, há os que simplesmente querem emigrar e deixar tudo isso para trás. O que nosso movimento pede é respeito, e o direito de existir livremente, a todas essas posições. Colocada numa balança e observada com cuidado essa exigência, qualquer pessoa razoável concluirá que não se trata de nada excepcional. Uma ruptura repentina não poderia causar em Cuba uma fratura social de conseqüências devastadoras? Acredito que a reconciliação é o caminho para a pacificação. Pregamos isso com o nosso lema, "liberdade e vida". Observem os brasileiros que nosso trabalho é muito mais espinhoso do que o dos ideólogos do governo, que têm uma missão muito mais cômoda, que é a de reprimir as idéias. Contrariamente ao que diz Fidel, o que há em Cuba não é a batalha das idéias, mas a repressão das idéias divergentes. O regime nada mais faz do que assustar o povo, afirmando que a distensão causaria o enfraquecimento não do governo, mas sim do próprio país, que levaria em um primeiro momento à perda da independência, das conquistas sociais de educação e saúde e, depois, acabaria por levar à generalização da corrupção e do crime. Os cubanos querem mudanças pacíficas, sem confrontos. Não queremos mais nem capitalismo selvagem nem comunismo selvagem. Nosso movimento nunca falou em liberdade de mercados - e não porque não a consideramos importante -, mas somos intransigentes na defesa da liberdade das pessoas. E as pessoas não devem estar submetidas a nenhuma força sistêmica, nem do mercado nem do Estado. Nossa proposta de mudanças não exclui nenhum cubano , nem os presos políticos nem os membros do próprio governo. O sr. já sentiu sua segurança pessoal ameaçada por causa de sua atuação política? Vivo sob ameaças constantes, feitas não só a mim, mas também à minha família. Os telefonemas estranhos, com ameaças veladas ou explícitas, são freqüentes. Agentes do governo me perseguem nas ruas o tempo todo. Telefonam e incomodam as pessoas que falam comigo. Sou católico. Quando vou à igreja, eles me acompanham de longe. Incomodam com ameaças os médicos que atendem pessoas da minha família. Há duas semanas, alguém soltou os parafusos das rodas do meu carro - uma Kombi 1974, fabricada no Brasil, que você viu na frente da minha casa. Câmeras instaladas nos postes pelos serviços de inteligência do regime monitoram todo o movimento da minha casa, quem entra ou sai daqui. Veja você mesmo (levantando-se da cadeira e abrindo a janela da frente da casa) que no muro aqui em frente pintaram um mural com a caricatura de George W. Bush festejando com um gusano ("verme", em tradução do espanhol, e palavra normalmente utilizada em Cuba para descrever os anticastristas exilados em Miami). No muro da esquina, puseram uma pichação: ?Numa praça sitiada, a dissidência é traição.? Tudo isso é parte de uma campanha de intimidação, e um exemplo da estratégia de terror promovida pelo regime. Essa sua visão da política cubana tem muitos seguidores aqui em Cuba? Temos amigos. Muitos estão na prisão, que suportam com fortaleza de vontade e espiritualidade. Outros sofrem com a pobreza, a ameaça, a perseguição. São algumas centenas, não milhares, esses amigos mais próximos. Mas o que nos conforta saber é que há uma imensa maioria da população cubana que apóia nossa proposta de mudanças políticas pacíficas. Por isso o governo nos persegue tanto. Como o sr. crê que Cuba é vista no exterior hoje? Muitos no exterior vêem Cuba pelo prisma da ideologia e só enxergam Fidel, Che, o romantismo dos anos rebeldes da revolução, etc. Mas é preciso dizer que queremos ser vistos sob outra ótica, como seres humanos, que têm o direito de ter direitos. Somos 11 milhões de seres humanos que queremos liberdade e dignidade. Que futuro o sr. prevê para o país? Acreditamos que as mudanças não serão possíveis sem reconciliação. E acreditamos que não há por que temer o futuro. Como os brasileiros, o povo cubano é inventivo, criativo e tem uma incomum capacidade de trabalho. Livres das amarras da opressão do Estado, seremos um país de trabalhadores com todo o potencial para prosperar. Só queremos que nos desatem as mão e nos tirem a mordaça. Quem é: Oswaldo Paya É hoje o mais importante dissidente interno de Cuba Fundou o Movimento Cristão Libertador (MCL), que promoveu a iniciativa conhecida como Projeto Varela - petição de um referendo sobre democracia e os direitos humanos que atraiu 25 mil assinaturas Ganhador do Prêmio Sakharov de Direitos Humanos, do Parlamento Europeu FUTURO DA ILHA: "Somos criativos e temos potencial para prosperar. Só precisamos que nos tirem a mordaça" DEMANDAS: "Não nos interessa agora o ?socialismo bonzinho?. Queremos a liberdade sem reduções ou relativismos" REPRESSÃO: "Vivo sob ameaças. Câmeras do serviço de inteligência monitoram o movimento em minha casa"

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