Repressão de Maduro supera a de Chávez

Ativistas denunciam agressões, torturas e desaparecimentos sem precedentes

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Por Oscar Medina e Caracas
Atualização:

CARACAS - O caso de Marvinia Jiménez é emblemático diante do que ocorre na Venezuela. É difícil esquecer as imagens que mostram quando uma robusta integrante uniformizada da Guarda do Povo - um componente militar subordinado à Guarda Nacional Bolivariana - a domina com violência, a arremessa no chão, monta nela e a golpeia seguidas vezes com o capacete.

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Difícil esquecer seu rosto deformado. Difícil imaginar o terror das horas durante as quais ela permaneceu algemada, trancada em uma cela, incomunicável, sem poder falar com a família, muito menos com um advogado. Marvinia - que tem problemas motores em metade do corpo - mora em La Isabelica, uma região pobre da cidade de Valência, no Estado de Carabobo, no centro do país. Ali, no dia 24, enquanto gravava com seu celular a investida da guarda contra um grupo de manifestantes, entre disparos e gases lacrimogêneos, ela foi agredida.

Um trecho da sua declaração ao jornal local El Carabobeño descreve o momento: "Um dos guardas quis arrancar o celular da minha mão, mas eu joguei o aparelho bem longe e não sei se alguém o encontrou. Neste momento, uma mulher que parecia um gorila avançou em mim. Enquanto ela me espancava, puxaram meus braços para trás e me algemaram. A mulher enlouquecida continuava batendo em mim. Parece que quebrou uma unha ao me jogar no chão e isso a enfureceu. Ela tirou o capacete e começou a me espancar com ele. Não lembro quantas pancadas recebi, achei que fosse desmaiar, porque, de nascença, tenho o lado esquerdo adormecido e minha mão estava ficando imóvel. Gritei para ela: ‘Tenho deficiência física, tenha dó de mim’. Ela não escutou - me arranhou, cuspiu em mim, me chutou, torceu o meu pescoço, me mordeu e me puxou os cabelos. Só a ouvi quando ela disse: ‘Maldita, você quebrou minha unha que era tão linda’. E me bateu com o capacete do lado esquerdo do rosto e na testa. Tenho hematomas no rosto, inflamações por toda parte, galos na cabeça. O que lembro deste momento é de um guarda que gritava: ‘Morena, bate mesmo nessa magricela suja’. Outro ainda gritou: ‘Larguem ela, que estão gravando’."

Defensores dos direitos humanos ouvidos por jornalistas concordaram em ressaltar o esquema comum: prisões arbitrárias, aplicação excessiva e desproporcional da força, uso ilegal de armas de fogo, torturas, maus-tratos e humilhações, incomunicabilidade dos detidos, violações do devido processo e restrição da liberdade. Também reclamaram de forma veemente da falta de ação da Defensoria Pública. Gabriela Ramírez, que chefia o organismo, declarou que no seu escritório não chegaram as denúncias de torturas de que se fala nos veículos de comunicação e nas redes sociais.

O Foro Penal Venezuelano, cujos advogados assistiram gratuitamente os presos, resumiu o que vem sendo denunciado ao longo dessas semanas em cinco páginas. Desde o dia 9, até as 18 horas do dia 26, constavam nos registros, "609 detenções, prisões ou retenções ilegais em todo o país". Desse grupo de pessoas, 162 haviam sido apresentadas aos tribunais "e para todas foi aberto um processo penal por sua participação das manifestações, acusando-as de delitos que vão desde supostos danos à propriedade pública e privada a terrorismo".

Até hoje, já são mais de 1,6 mil processados segundo a própria Procuradoria-Geral da República, embora, no dia 7, houvesse 1,1 mil detidos da lista do tribunal. Finalmente, a corte apresentou à Defensoria Pública e à Promotoria 33 casos de tortura e "tratamento cruel, desumano e degradante" de presos.

Destino. Segundo ativistas, há um padrão de violações, embora com elementos que poderiam ser qualificados como "inovadores". "Não sei se podem ser chamados de ‘desaparecidos’, porque essa não é a categoria na definição de direitos humanos, mas temos uma grande quantidade de casos de pessoas incomunicáveis", explica Alfredo Romero, do Foro Penal Venezuelano. "Tornou-se algo normal."

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"Em 2007, durante as manifestações pelo fechamento da Rádio Caracas Televisión (um canal privado ao qual Hugo Chávez negou a renovação da concessão), foram detidas 251 pessoas. Nós, advogados, fomos para os centros de reclusão e pudemos falar com os detidos. Hoje, não. E o pior é que alguns foram obrigados mediante espancamento a assinar documentos afirmando que tiveram acesso a um defensor", compara Romero.

Nizar Fakih, do Centro de Direitos Humanos da Universidade Católica Andrés Bello (Ucab), percorre os cárceres da cidade e confirma o relato de Romero: "A regra é não permitir que eles se comuniquem com gente de fora".

Falar com um advogado e com os parentes dos detidos não é uma concessão. O Artigo 44 da Constituição da República Bolivariana de Venezuela estabelece esse direito para todo detido. Ultimamente, ocorre o contrário: gente capturada pela Guarda Nacional ou algum corpo policial "some" durante horas. Em alguns casos, dias, sem que seus parentes tenham notícias além de um vago "eles o levaram". "Muitos passam de 4 a 6 horas sem ser localizados. E na região metropolitana de Caracas, tratamos de pelo menos dez casos em que tivemos contato com os detidos depois de 48 horas ou mais".

Advogados e defensores dos direitos humanos que descobriram o paradeiro de manifestantes detidos percorrendo delegacias de polícia, centros de reclusão e tribunais. "Nós nos mobilizamos e assim podemos encontrá-los", denuncia Fakih. "Os parentes ou os amigos nos dizem para onde eles foram levados e isso nos permite inferir o lugar de reclusão. Em muitos casos, não nos permitem vê-los nem na condição de advogados - e eu diria que em 98% dos casos o Corpo de Investigações Científicas, Penais e Criminalísticas (CICPC), a Guarda Nacional e a Polícia Nacional não deixam que os parentes os vejam."

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Marino Alvarado, da Provea, acrescenta um elemento: "Os advogados não só foram impedidos de visitar os detidos, como foram ameaçados por agentes policiais - e outros receberam ameaças até de juízes, por reclamar em tribunais pela violação dos direitos dessas pessoas".

Alvarado denuncia também a falta de informações exatas sobre os detidos: "É uma prática desumana. Muitas vezes obtemos os dados porque algum policial nos passa informalmente, por baixo do pano". E a falta de comunicação dificulta a ação da defesa: "Temos acesso aos detidos apenas cinco ou dez minutos antes que eles sejam apresentados aos tribunais", afirma Fakih. "E nesse breve espaço de tempo é que temos de preparar a defesa."

A Provea destaca um novo elemento na ação do Estado: "O que nos preocupa é a participação de grupos paramilitares na repressão", afirma Alvarado, sobre os grupos de motociclistas que agem durante as manifestações. "Esses grupos existem há muito tempo - e atuavam ocasionalmente - mas, desde o mês de fevereiro, sua ação se intensificou em coordenação com a Guarda Nacional, deixando pessoas assassinadas e feridas. Eles foram vistos até prendendo gente e destruindo casas."

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Alvarado refere-se aos chamados "coletivos", bandos organizados de motociclistas ligados ao governo que agem como força de choque - até com o uso de armas - com a anuência dos corpos policiais e militares, que recebem respaldo do governo. No dia 7, a ministra da Defesa, Carmen Meléndez, condecorou 57 membros da Guarda Nacional que teriam sido feridos nos protestos. 

TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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