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Ressurreição do império

Erdogan quer, ao mesmo tempo, ser tão grande quanto Ataturk e o califa Mehmet

Atualização:

Em 15 de julho houve um golpe militar na Turquia que tinha como objetivo destituir o presidente Recep Tayyip Erdogan, cujos opositores o acusam de ter tomar dois rumos distintos: de um lado, na direção de um islamismo cada vez mais agressivo e de outro, tomado por um desejo inebriante de poder absoluto, sonhando ressuscitar, depois de um longo intervalo, uma espécie de Império Otomano.

Um mês depois, em que pé estamos? O presidente Erdogan continua no poder, mais sólido do que nunca e impaciente para se tornar um novo “califa”. Quanto aos conspiradores e seus amigos (Exército laico, funcionários do alto escalão, intelectuais, democratas, etc) foram presos em massa (350 mil). Mas o presidente não se alarma. Acaba de decretar a libertação de 38 mil prisioneiros sem vínculos com o golpe de Estado, para arrumar lugar nas prisões.

A aliança Putin-Erdogan foi construída com base na amizade entre os dois líderes, que restauraram a honra de seus respectivos países após a crise econômica e mostraram pouco respeito aos direitos humanos Foto: AP Photo/Alexander Zemlianichenko

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O fracasso dos militares mostrou a virtuosidade de Erdogan, seu sangue frio e sua surpreendente popularidade, explicados pelo apoio em massa dos religiosos. Em 15 de julho, quando os golpistas capturaram pontes, aeroportos e canais de TV, às 23h30 de uma noite quente, os imãs de 85 mil mesquitas turcas exortaram a população a enfrentar os tanques dos militares com o risco de ir ao Paraíso em caso de morte.

Uma noite estranha: centenas de minaretes despertam. Multidões de fiéis saem à ruas gritando “Takbir” ou “Allahu Akbar”, enquanto o alarido dos aviões dos golpistas toma conta do céu escuro.

Foi assim que Erdogan venceu o próprio Exército. E hoje desfruta de um poder jamais visto antes. A população o idolatra e o apoia. E que uso o presidente fará dessa reviravolta a seu favor? Seu sonho de um regime presidencial construído em torno de sua pessoa e uma Turquia portando a bandeira do “sunismo moderno” parece ao alcance da sua mão, e no futuro a imagem obsessiva da Grande Turquia, ou seja, a ressurreição do antigo Império Otomano, que desapareceu após a guerra de 1914-1918.

Na arrogância do seu triunfo, Erdogan parece acrescentar às suas fantasias um novo capítulo. Vem afirmando que é o chefe turco mais poderoso depois de Ataturk. Ora, foi Ataturk que, após as derrotas de 1918, aboliu o califado em 1924 e lançou as bases da Turquia moderna, um país resolutamente laico, cujo Exército, até o recente golpe, era elemento fundamental.

Em resumo, o presidente Erdogan estabeleceu dois objetivos incompatíveis que acredita que estão hoje ao alcance do seu orgulho: ser o herdeiro de Ataturk, o pai da Turquia moderna e laica, e de Mehmet, o califa que capturou Constantinopla quando tinha 21 anos, em 23 de maio de 1453, inaugurando o Império Otomano. Sonho curioso, mas todos os sonhos são loucos: ser ao mesmo tempo califa e o grande vizir. À luz dessa brusca inflexão da história moderna, podemos nos interrogar sobre o comportamento dos países europeus, uma vez que a Turquia, a mesma de Erdogan, há dez anos já vinha batendo à porta da União Europeia, e continua desejando nela entrar.

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Na época, a demanda de Ancara foi recebida com frieza, desdém e condescendência. O então presidente francês, Nicolas Sarkozy, foi um dos dirigentes europeus mais hostis à adesão turca.

Lembro-me de, em vários artigos publicados no Estado ter defendido a entrada da Turquia na União Europeia. Os recentes acontecimentos e o caminho perfeito que parece se abrir hoje para Erdogan me dão ou não razão?

A resposta é ambígua. Poderíamos, por exemplo, dizer que hoje a Turquia mostra sua face verdadeira, nada parecida com a da Europa e que fizemos bem em bater a porta no seu nariz. Mas podemos também defender opinião contrária e afirmar que esse desvio de rumo da Turquia, numa direção islamista e autoritária, resultou da humilhação que os europeus infligiram ao país, tratando com desprezo seu pedido de adesão. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO 

É CORRESPONDENTE EM PARIS  

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