Restrições já alteram cotidiano europeu

Na fronteira entre a França e a Suíça, endurecimento de regras após atentados causa filas e afeta economia

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Por SUÍÇA
Atualização:

(Atualizada às 19h15) O espanhol José Hernandez, de 23 anos, trabalha na Suíça e, regularmente, visita sua namorada, do outro lado da fronteira, na França. De uma geração de europeus que não conheceu as fronteiras nacionais, o jovem foi surpreendido no último fim de semana quando, ao retornar para casa depois de uns dias com a namorada, teve seu carro parado entre a França e Genebra, sendo obrigado a responder a mais de 30 minutos de perguntas e vendo seu carro inspecionado. “Essa foi a primeira vez que ocorreu comigo. Senti violado”, disse ao Estado, com um ar visivelmente contrariado. 

O “incidente” com o espanhol, que cresceu vendo as separações entre países desmoronar, é apenas uma demonstração de como o fluxo inédito de refugiados e a ameaça terrorista mudaram a realidade das fronteiras europeias. 

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Nos últimos meses, seis países europeus voltaram a colocar algum tipo de controle em suas fronteiras, entre eles Alemanha, Noruega, Áustria, Suécia, Dinamarca e França. Todos garantem que as medidas são temporárias. Mas não existe previsão de quando seriam retiradas e, por enquanto, a pressão é justamente para que mais governos sigam o mesmo caminho. 

Pela Europa, cerca de 1,7 milhão de pessoas cruzam fronteiras praticamente todos os dias. Na região entre a França e a Suíça, são pelo menos 70 mil pessoas que diariamente fazem a viagem. Portanto, a volta de fronteiras significaria não apenas um golpe contra um dos principais símbolos da integração regional, mas também provocaria um impacto real para milhares de pessoas. 

Se inicialmente esses controles foram criados diante do fluxo de refugiados, os ataques em Paris em novembro abafaram qualquer chance de um fim rápido para a volta das fronteiras. Naqueles dias que se seguiram às mortes na capital do país, os franceses fecharam praticamente todos os 11 pontos de entrada com a Suíça. Para milhares de pessoas, as medidas transformaram trajetos de 15 minutos entre o trabalho em Genebra e suas casas em uma viagem de mais de uma hora e meia. Longas filas se formaram pelas estradas e o que parecia uma região aberta entre dois países voltou a se deparar com barreiras, aduanas e policiais. 

Desde então, o controle já foi relaxado, até mesmo diante do protesto de empresários e prefeitos de cidades fronteiriças que já temiam ver um impacto econômico. Mas as verificações não desapareceram e mudaram a rotina das cidades próximas.

Em Douvaine, na França, um Carrefour foi aberto para abastecer basicamente os consumidores suíços. Mas, segundo a gerência do local, o fluxo caiu desde o final de 2015. 

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Oficialmente, os suíços têm direito a comprar duas garrafas de vinho e 1 quilo de carne. Mas, sem fronteiras, as compras superavam em muito o teto estabelecido. Agora, com a volta dos controles, muitos passaram a evitar as compras do lado de lá da fronteira.

Na pequena cidade de Chens Sur Leman, do lado francês, são os novos empreendimentos imobiliários que podem sofrer. O local foi alvo de várias construções nos últimos dois anos, oferecendo-se como “cidade dormitório” para os trabalhadores de Genebra. Agora, com a volta dos controles, os vendedores dizem que a procura caiu. 

Os mais velhos do vilarejo avaliam a nova realidade com outra perspectiva. Jean Claude Peirrot, de 87 anos, conta ao Estado como sua infância foi marcada justamente pela fronteira com a Suíça. “Durante os anos da 2.ª Guerra, a fronteira da Suíça era a fronteira da liberdade. Ela estava fechada. Mas sabíamos que do outro lado a guerra não existia”, disse. 

Mas nos últimos 20 anos, a Europa testemunhou um desmonte dessas barreiras. Entre os vilarejos de Hermance, na Suíça, e a França, a aduana está abandonada e sua deterioração é quase um símbolo da vitória do fim das fronteiras. Apenas uma bandeira da Suíça marca o início de um novo país, enquanto moradores levam seus cães para caminhar, ignorando a existência de dois países.

O posto que antes marcava o controle de pessoas hoje é um depósito de lixo, com suas paredes cobertas de cartazes sobre eventos na região. Na esquina da aduana abandonada, uma pizzaria cobra “preços suíços”. Mas Pierluigi Fittipaldi, o dono, garante que “aceita qualquer moeda”. “Não sei o que seria do meu restaurante sem os clientes do lado de lá da fronteira”, disse. 

 

Mas nem todos são assim. Em outro posto de fronteira, em Aniere (Suíça), são os três postos de gasolina instalados na rua da aduana que constatam a queda no fluxo de pessoas.

“Existia mercado para os três postos nesta mesma rua. Hoje, acho que um só daria conta dos clientes”, disse Laure Chappuis, a gerente do local. Sua aposta, porém, é de que as economias dos dois lados da fronteira já é uma só. "O fluxo vai continuar. Afinal, essas cidades na França só existem em razão dos empregos gerados na Suíça". 

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Foi na mesma avenida que, há menos de um mês, a polícia suíça identificou e prendeu duas pessoas sob a suspeita de terrorismo. Agora, o posto de fronteira de Aniere tem com frequência uma operação policial para verificar quem entra na França. 

Por outros lugares da Europa, as novas fronteiras também modificam as rotinas. Diante dos controles impostos entre a Suécia e Dinamarca, as previsões apontam que cerca de 10 mil pessoas devem ser afetadas todos os dias. São suecos que, diariamente, viajam até a capital da Dinamarca para trabalhar diante dos salários mais elevados pagos em Copenhague.

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No ano 2000, a aproximação entre os dois países parecia irreversível quando a ponte de 8 quilômetros sobre o estreito foi inaugurada. Não são poucos os suecos que apontam que levam menos tempo para chegar ao trabalho “no exterior” que um morador de Londres ou Paris. 

 

Desde o dia 4, tudo isso mudou quando a Suécia introduziu novos controles na ponte, como forma de limitar o fluxo de refugiados. Ao Estado, Hanna Berglin diz que seu trajeto de 30 minutos entre sua casa e o escritório onde trabalha em Copenhague já não é uma realidade. “Nesta semana, levei mais de uma hora. Espero que as coisas mudem”, disse por telefone. 

Não são poucos os relatos de suecos que, diante do costume de cruzar a ponte regularmente, foram pegos esta semana sem seus passaportes ou identidade. Um deles, o jornalista sueco David Nyman foi obrigado a pegar um taxi para voltar para casa e impedido de entrar no trem que o levaria de volta para a Suécia. Agora, espera recuperar os US$ 119,00 que gastou no trajeto.

A semana também registrou centenas de pessoas que, diante das filas de controle, perderam seus trens e prometem solicitar um reembolso. A DSB, a empresa estatal dinamarquesa que opera os trens, também estima que os controles vão custar US$ 140 mil por dia e não descarta repassar a conta justamente para os passageiros, com passagens mais caras. 

 

Para a Confederação de Trabalhadores Suecos, o risco é de que a volta das fronteiras também tenha um impacto econômico.“O perigo é de que isso tenha um elevado custo econômico, para ambos os lados”, apontou a entidade. Um dos setores mais alarmados com a barreira é o da hotelaria, onde trabalham 1,1 mil suecos em empresas do lado dinamarquês da fronteira. 

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O efeito dominó da medida também já foi sentido. Horas depois do anúncio da Suécia, foi a Dinamarca que revelou que colocaria controles em sua fronteira, desta vez com a Alemanha. O temor de Copenhague é de que, com a fronteira fechada aos refugiados para chegar até a Suécia, muitos acabem ficando pela Dinamarca. Portanto, a ordem era evitar que eles entrem e permaneçam na Alemanha. 

 

O problema, segundo a indústria, é que isso também afeta o transporte de carga entre a Alemanha e a Dinamarca, com trajetos mais longos e, eventualmente, preços mais altos para os produtos importados. 

 

Diante da crise, a UE convocou tanto os dinamarqueses quanto os suecos para tentar minimizar o impacto da barreira e, na quarta-feira, ambos anunciaram que iriam retirar os controles “assim que possível”. Mas nenhuma data foi estabelecida. 

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“A Europa passou anos dando lições ao mundo sobre o que deveriam fazer sobre os refugiados e fronteiras”, disse nesta semana o novo Alto Comissário de Refugiados da ONU, Filippo Grandi. “Se ela se fechar, tenha certeza de que o mundo também vai se fechar”, completou. 

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