'Resultados apresentados por Ortega são parte da mesma farsa', diz opositora nicaraguense exilada

Presidente do Ciudadanos por la Libertad, último partido de oposição a ser cassado antes da votação na Nicarágua, Kitty Monterrey teve até a cidadania retirada pelo governo Ortega

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Por Renato Vasconcelos
Atualização:

Era o dia 2 de agosto, data limite para os partidos políticos da Nicarágua realizarem a inscrição de seus candidatos à Presidência do país, quando o Ciudadanos por la Libertad (CxL) surpreendeu a todos ao lançar uma chapa encabeçada pelo ex-comandante da contrarrevolução, Óscar Sobalvarro. O motivo da surpresa: seis pré-candidatos pelo partido haviam sido preso antes da abertura do prazo de inscrição.

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Quatro dias depois da inscrição da chapa, porém, já não havia nem candidato e nem partido político - e, no caso da presidente da sigla, Carmella María Rogers Amburn, conhecida no país como Kitty Monterrey, não havia sequer nacionalidade.

"Em 6 de agosto, com apenas uma resolução dos juízes eleitorais, sem nenhum processo legal, o regime dissolveu o partido e cancelou meus documentos de identidade, até minha certidão de nascimento", contou a líder opositora, que atualmente está exilada na Costa Rica, em entrevista ao Estadão.

Presidente do Partido Ciudadanos por la Libertad (CxL), Kitty Monterrey se exilou na Costa Rica após ter sua cidadania nicaraguense cassada pelo governo Daniel Ortega. Foto: Prensa/ CxL

Monterrey considera que a Nicarágua já vive sob uma ditadura liderada por Daniel Ortega, diz que a única saída apoiada pela oposição é através da via democrática e afirmou que a votação do domingo, 7 - vencida por Ortega com 75% dos votos válidos, segundo os dados oficiais -não configura uma eleição.

"As votações do domingo na Nicarágua não constituem uma verdadeira eleição, porque o regime de Ortega, ao excluir à oposição do processo, eliminou qualquer possibilidade de escolha dos cidadãos. Mais do que uma eleição fraudulenta, esta é uma 'não eleição'".

Leia a entrevista na íntegra

Em agosto, você se exilou na Costa Rica depois do seu partido, o CxL, ser cassado pela autoridade eleitoral. Qual é sua situação e de seu partido hoje?

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Exatamente. Exilei-me na Costa Rica em agosto, quando o regime de Ortega dissolveu o partido Ciudadanos por la Libertad e retirou ilegalmente minha cidadania nicaraguense, deixando-me exposta à deportação ou à prisão. Atualmente, além dos migrantes por razões econômicas, somos mais de 100 mil refugiados na Costa Rica, que tivemos que deixar Nicarágua devido à repressão que se vive desde 2018.

O Ciudadanos por la Libertad encabeçava a única aliança opositora autorizada a participar nas eleições, depois que o regime havia dissolvido outros dois partidos opositores. Assim que nem nós nem a oposição em geral pudemos apresentar candidatos.

Quantos pré-candidatos pelo partido foram detidos pelo governo antes das eleições e qual a situação atual deles?

Há sete aspirantes à Presidência presos na Nicarágua. Seis deles, com exceção de Miguel Mora, iriam participar como pré-candidatos da aliança eleitoral encabeçada pelo Ciudadanos por La Libertad. Para definir o candidato opositor, havíamos planejado um processo seletivo com metodologia baseada em pesquisas e debates. Arturo Cruz, Juan Sebastián Chamorro e Noel Vidaurre já haviam se inscrito, e Cristiana Chamorro, Félix Maradiaga e Medardo Mairena haviam anunciado no final de maio que se inscreveriam. Dois dias após este anúncio, as prisões começaram. Ante isto, selecionamos no fim de julho um novo candidato, Oscar Sobalvarro, e, em resposta, o regime cancelou a personalidade jurídica do partido.

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Atualmente na Nicarágua há 159 presos políticos. Deles, 39 foram detidos a partir de junho, entre líderes políticos, empresariais, jornalistas e ativistas da sociedade civil. Estão presos e isolados, acusados majoritariamente de traição à pátria, com problemas de saúde e mal nutridos, sem poder comunicar-se com seus advogados ou médicos, e só lhes foi permitido duas visitas familiares em mais de quatro meses de prisão.

Havia alguma possibilidade de Ortega não ser reeleito?

As votações do domingo na Nicarágua não constituem uma verdadeira eleição, porque o regime de Ortega, ao excluir à oposição do processo, eliminou qualquer possibilidade de escolha dos cidadãos. Mais do que uma eleição fraudulenta, esta é uma "não eleição". Um processo dessa natureza não outorga nenhuma legitimidade e não ajuda a solucionar a crise política que a Nicarágua vive.

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Os dados oficiais apontam vitória de Ortega com 75% dos votos, e participação de 65% do eleitorado do país. Como você vê os dados oficiais? Era esse o cenário esperado?

Os resultados apresentados por Ortega são parte da mesma farsa. As ruas estiveram vazias e o processo de votação para que Ortega continuasse no poder não somou nem 15% do eleitorado, o que demonstrou a negação massiva da população, cenário que esperávamos.

Representante legal da Aliança, Kitty Monterrey, denuncia sumiço de Moreno em entrevista coletiva Foto: Jorge Torres/EFE
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Muitas instituições participaram dos golpes à oposição em Nicarágua, como o Conselho Supremo Eleitoral, a Polícia Nacional, o Ministério Público… Qual é o nível de influência política de Daniel Ortega nestas instituições? Se pode confiar na imparcialidade delas?

O regime de Ortega tem controle absoluto de todas as instituições do Estado, sem exceção, incluindo o Poder Judiciário e o órgão eleitoral. Esse controle foi sendo adquirido desde sua chegada ao poder em 2007. Não existe independência de poderes e nada se move no Estado sem a vontade da Presidência.

Por exemplo, no meu caso, eu era presidente do principal partido de oposição e tinha dupla nacionalidade de origem, porque minha mãe é nicaraguense e meu pai é americano. Em 6 de agosto, com apenas uma resolução dos juízes eleitorais, sem nenhum processo legal, o regime dissolveu o partido e cancelou meus documentos de identidade, até minha certidão de nascimento.

Como é fazer parte da oposição na Nicarágua neste momento?

É um enorme risco, especialmente para a maioria dos nicaraguenses que seguem no país, que se converteu em um Estado policial, onde as forças de segurança controlam as ruas e há leis que criminalizam qualquer expressão de dissidência.

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E o que faz com que a oposição ainda tente criar vias democráticas se há um comprometimento das instituições ao ponto de não permitir uma eleição justa?

Com as prisões de seus possíveis adversários e a dissolução dos partidos opositores, Ortega acabou com a oportunidade de que estas eleições marcassem o início de uma transição democrática. No entanto, nós e a maioria dos nicaraguenses estamos convencidos de que uma democratização do país só pode ser atingida pacificamente e começa por permitir eleições livres. Por isso insistimos e seguimos insistindo em que se permita ao povo decidir e se restabeleçam às liberdades.

Você considera que a Nicarágua vive sob uma ditadura?

Com a situação descrita, de um país sem liberdades, onde se impõem a vontade de quem governa, é evidente que a Nicarágua vive uma ditadura. E isso não é uma narrativa criada pela oposição, se não uma realidade que nasce das próprias ações do regime.

Que papel a oposição pode fazer para mudar o cenário atual do país nos próximos anos?

Estamos convencidos de que a Nicarágua como país não é sustentável na situação atual. A falta de liberdades está destruindo a economia, afugentando investimentos, isolando politicamente o país e empobrecendo mais o povo, o que afeta inclusive os seguidores do regime. Por isso consideramos que é necessária uma transição democrática, e com esse objetivo a oposição deve se organizar, construir uma agenda comum que permita seguir pressionando por essa abertura política no curto ou médio prazo e possa oferecer uma alternativa aos nicaraguenses. Porque tão importante quanto conseguir o fim da ditadura, é construir uma democracia sustentável.

Vocês esperam por alguma iniciativa da comunidade internacional?

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A comunidade internacional vem condenando a atuação do regime Ortega, especialmente depois da repressão brutal aos protestos de 2018. No entanto, a experiência de outros países nos ensina que a comunidade internacional tem um âmbito de ação limitado e não pode substituir o esforço dos nicaraguenses para encontrar vias de solução.

Apesar disso, para apoiar os esforços dos nicaraguenses é muito importante que a comunidade internacional continue denunciando o que está ocorrendo e demandando a democratização do país - ainda mais agora que o jornalismo livre e a oposição estão silenciadas dentro da Nicarágua.

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