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Revolta da vacina nos EUA

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Por MAC MARGOLIS
Atualização:

A revolta começou devagar - uma recusa ali, um boicote acolá. Até o ano passado, a reação contra a vacina infantil ganhou força e dimensão nacionais nos Estados Unidos. Alguns pais alegaram motivos religiosos, dizendo-se contra a "violação epidérmica". Outros assustaram-se com possíveis sequelas: a vacina de sarampo, por exemplo, supostamente deixaria os pequenos suscetíveis ao autismo. Que esses estudos tenham sidos amplamente refutados e os pesquisadores defenestrados pela opinião pública, pouco importa. Os Estados Unidos são uma república federativa, onde cada Estado legisla como quer e as convicções individuais são consagradas. Em tese, a vacina é obrigatória, mas 48 dos 50 Estados permitem isenções religiosas ou filosóficas. Adicione a esse caldo cultural a globalização, que dá asas para males diversos e uma nova geração de pais que desconhece o sarampo e outros males clássicos da infância - em razão da imunização universal - e as condições perfeitas para o contágio estão armadas. Eis a Revolta da Vacina à moda americana, que surgiu em seguida a um surto de sarampo e tornou-se manchete mundial. Nas primeiras cinco semanas do ano, houve 147 casos confirmados de sarampo nas Américas, 121 dos quais nos Estados Unidos e o resto no Brasil (21), no Canadá (4) e no México (1). Pior, um dos focos foi a Disneylândia, na Califórnia, um vetor perfeito para a infecção. Nessa pororoca de patologias e crenças, bem que os EUA poderiam se inocular com a experiência brasileira. Há 111 anos, em meio a um surto de varíola, a população mais pobre do Rio de Janeiro insurgiu-se contra a ordem de Oswaldo Cruz, o sanitarista militante que comandou os agentes de saúde a entrarem à força nas casas cariocas. O grito popular "Abaixo a vacina!" confundiu-se com o oportunismo dos militares, devotos do positivismo, que viram na confusão uma deixa para tentar derrubar o presidente Rodrigues Alves e erguer a ditadura iluminista. O governo resistiu, mas a mistura de ignorância popular, fé fardada e o "autoritarismo sanitarista", nas palavras do historiador José Murilo de Carvalho, explodiu nas ruas em 1904, com saldo de 23 mortos, 67 feridos e quase mil prisões. A violência foi didática. Quando o governo suspendeu a vacinação obrigatória, a varíola voltou. "Os não vacinados pegaram a doença, os vacinados, não", disse Reinaldo Menezes Martins, consultor científico da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. "A melhor propaganda para a vacina é a doença." De lá para cá, o governo brasileiro trocou o sanitarista militarizado por campanhas nacionais de imunização, com parceria entre grupos cívicos, escolas, igrejas e pediatras, além de a população fazer as pazes com a agulha. "Em vez de obrigação, a população passou a ver a vacina como um direito, um bem público e não uma imposição do mercado privado de saúde, como nos EUA ou na Europa", disse Menezes. O que mais preocupa as autoridades brasileiras agora não é o preconceito contra a vacina, mas o acesso a ela. "Nas periferias mais pobres, há muitas mulheres chefes de família, que ainda têm de decidir entre trabalhar ou levar o filho para o posto durante dez dias no ano", disse o secretário de Vigilância em Saúde, Jarbas Barbosa. A resposta do governo foi abrir as clínicas à noite. "A cobertura de vacinas é boa, mas precisa melhorar", afirmou Barbosa. Há ainda o risco de o país se contagiar pela balela importada. "Entre parte da nossa classe mais favorecida há a falsa impressão de que a boa vida protege contra a doença", disse Barbosa. "A ideia de que não se precisa vacinar é uma ilusão." Os dados internacionais são eloquentes. Entre 2000 e 2013, a vacina contra o sarampo já salvou 15,6 milhões de vidas, de acordo com a Organização Pan-Americana de Saúde. Desprezar esse legado pode ser fatal.MAC MARGOLIS É COLABORADOR DA 'BLOOMBERG VIEW' E COLUNISTA DO 'ESTADO'

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