Revoltas expõem miséria e crime nas periferias britânicas

Em 30 anos, desigualdade em Londres explodiu; desemprego e criminalidade em Tottenham estão entre os mais elevados do país

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Por Andrei Netto
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ENVIADO ESPECIAL / LONDRESNos discursos políticos e na imprensa da Grã-Bretanha, um consenso informal consolidou-se na semana em que as periferias do país arderam em chamas: os quatro dias de mortes, saques e violência em Londres e em outras das principais cidades britânicas são frutos de criminalidade e nada mais. Mas o argumento, usado à exaustão pelo primeiro-ministro conservador David Cameron, entra em choque com a constatação das ruas e das universidades. Para habitantes e estudiosos de áreas "sensíveis", as revoltas trazem à tona a miséria de subúrbios britânicos como Tottenham, onde a criminalidade é recorde, assim como a desigualdade, o desemprego e a falta de perspectivas.Durante a semana, o Estado mergulhou no cotidiano do ponto exato da periferia onde os distúrbios sociais explodiram na noite do sábado passado, dois dias após a morte de Mark Duggan, de 29 anos, em um confronto com a polícia, suspeita de uso excessivo da força. O retrato, traçado com a ajuda dos próprios vândalos, de moradores e comerciantes de Tottenham, além de acadêmicos, não deixa dúvidas: situado a 14,5 km da opulência da Inner London, o centro urbano mais abastado da Europa, Tottenham é a síntese de uma Inglaterra minada por pobreza, discriminação e tensão constante com as forças de ordem.Na principal avenida de Tottenham, o trânsito de veículos e pedestres seguia interrompido e a presença ostensiva de agentes da Scotland Yard garantia a segurança até o fim da semana. Mas nos prédios, lojas e veículos destruídos pelo fogo as marcas da cólera social são visíveis. Vivendo em um ginásio, várias das 27 famílias desabrigadas pelo incêndio criminoso do Carpet Right - edifício cujas imagens rodaram o mundo - ainda se mostram desorientadas com a violência do ataque. "Tive de fugir para não morrer. Todo o prédio foi destruído como em um filme catástrofe de Hollywood", descreveu o jornalista Lance Chinnian.O pastor brasileiro Marcos Brito, de 38 anos, viu o vandalismo contra joalherias e lojas de eletrônicos e a destruição de casas. Ao filmar os distúrbios com um celular, no sábado, foi agredido por manifestantes e teve o aparelho destruído. "Foi muito violento", diz Brito. "Não posso pensar em ir embora, pois tenho o trabalho na igreja. Mas a comunidade brasileira - e não apenas ela - está muito assustada."Se comunidades estrangeiras estão amedrontadas é porque um dos orgulhos britânicos, a política de "miscigenação urbana" não evitou a segregação, constatam sociólogos britânicos. Ao todo, 40% da população londrina é constituída por imigrantes, mas eles se concentram em maior número em regiões como Tottenham ou East End. Nesses bairros, impera a visão de que a polícia é racista e as autoridades dividem os imigrantes em guetos, sejam quais forem suas origens.Em Tottenham, uma das regiões de maior diversidade étnica da Europa, mais de 300 línguas podem ser ouvidas pelas ruas - e o inglês é das mais raras. Descendentes de africanos e caribenhos são maioria, mas irlandeses, colombianos, albaneses, curdos, turcos, somalis, portugueses e brasileiros se misturam à paisagem urbana. "Os eventos de Tottenham foram claramente resultado de tensões crescentes entre a polícia e a comunidade local, em parte por causa de raça e dos esforços da polícia em combater gangues criminosas", pondera o sociólogo Hugo Gorringe, especialista em periferias europeias da Universidade de Edimburgo.Mas o pior elemento parece ser a sensação crescente de que nos subúrbios as chances de prosperar são mínimas, em contraste com a capital. Segundo estudo do Escritório Estatístico das Comunidades Europeias, a Inner London, o centro geográfico onde habitam 3 milhões de pessoas, a renda média chega a ? 96 mil ao ano, a mais elevada da Europa. Na Outer London, a periferia onde vivem 4,8 milhões de pessoas, a remuneração média cai para ? 30,6 mil.Somados ativos financeiros, imóveis e bens pessoais, como automóveis, a média de riquezas dos 10% mais ricos é 97 vezes maior do que dos 10% mais pobres. A diferença só cresce há 30 anos, dos governos ultraliberais de Margaret Thatcher até o de Cameron, passando pelos trabalhistas Tony Blair e Gordon Brown. A consequência é visível: a Grã-Bretanha é cada vez mais uma terra de desigualdade. "O pessoal aproveitou os distúrbios para roubar o que nunca consegue comprar", diz o traficante The Owl (mais informações nesta página), referindo-se a tevês LCD e celulares saqueados durante a revolta.Em comum, os subúrbios de Londres, Liverpool, Birmingham e Manchester têm as estatísticas adversas. E, mais uma vez, Tottenham serve de exemplo negativo. Dados de junho indicam que o distrito sofre as maiores taxas de pobreza do país. O desemprego soma 8,3%, o dobro de Londres (4,2%) e entre os jovens com menos de 24 anos chega a 20%. É nesse cenário que a indústria do crime floresce. Além de uma gangue já histórica, a Manden, a cidade agora é dominada pela máfia turca, acusada de controlar 90% do tráfico de heroína do país. Na cidade, o crime virou um meio de sobrevivência. "Ninguém aqui precisa de emprego. Tem muitos modos de fazer dinheiro sem trabalhar, e Tottenham já entendeu isso", diz The Owl. Não por acaso, lembra, Mark Duggan era traficante.

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