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Rixa antiga impede aproximação

Albaneses e sérvios evocam episódios traumáticos do passado para rejeitar convivência pacífica em Kosovo

Foto do author Lourival Sant'Anna
Por Lourival Sant'Anna , MITROVICA e KOSOVO
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No começo, Vuka Jovanovic, de 75 anos, vestida de luto, recusa-se a falar ao repórter. À medida que conta a sua história, é fácil entender por quê. "Tudo o que eu tinha ficava do outro lado do rio", conta, usando um vocabulário servo-croata antigo que o intérprete, um estudante de direito sérvio de 29 anos que lutou na guerra de 1999, custa a entender. "Os albaneses queimaram a minha casa na guerra. Tinha uma filha inválida e não conseguia correr enquanto fugia empurrando a cadeira de rodas. Os albaneses me perguntaram por que eu não a matava." A filha única de Vuka morreu em 2006. Viúva, ela recebe uma pensão de 3 mil dinares sérvios (R$ 92) e vive só num minúsculo apartamento. Vuka tinha 11 anos quando os alemães invadiram o povoado de Leposavic, no norte de Kosovo, e teve de fugir com a família para as montanhas, onde ficou por quatro meses, em 1943, durante a 2ª Guerra Mundial. "Os alemães matavam e roubavam, e os albaneses eram aliados deles", recorda. "Eles tinham uma unidade da SS (polícia secreta nazista) muito temida, a Skenderbeg." Como todos os sérvios de Kosovo com quem o Estado falou, Vuka é contra a independência do território em relação à Sérvia. "Temos de lutar por Kosovo", diz. "As igrejas são dos sérvios, não dos albaneses." Em Kosovo se encontram alguns dos mais antigos santuários dos ortodoxos sérvios. Os albaneses são em sua maioria muçulmanos, e os restantes, católicos. Gazimestan, a apenas 5 km de Pristina, a capital do novo país, foi palco da primeira Batalha de Kosovo (1389), em que o Império Otomano derrotou os sérvios. Desde a proclamação da independência, no domingo, o monumento que lembra esse episódio está cercado por soldados eslovacos a serviço da Kfor, a força internacional liderada pela Otan em Kosovo. A cerca de cem metros de onde o repórter do Estado deixou Vuka, do outro lado do Rio Ibar, o albanês kosovar Luan Krelona, de 65 anos, caminha com a neta sob o frio cair da tarde de inverno. "Nossa casa ficava em Barilet, bairro misto no norte de Mitrovica", conta ele, que se aposentou como gerente da feira da cidade. "Em 1992, fomos agredidos pelos sérvios, e tivemos de deixar tudo." Krelona, cujos pais nasceram em Mitrovica, lembra que antes não havia tantos sérvios na região. Foi o marechal Josip Broz Tito, fundador e governante da Iugoslávia entre 1945 e 1980, quem os trouxe, recorda. "Os sérvios são selvagens", resume Krelona, cujo irmão foi morto logo depois da guerra de 1999. Nascido em 1942, ele não se lembra da ocupação da Itália fascista seguida pela da Alemanha nazista, na 2ª Guerra. COLABORADORES "É verdade que alguns albaneses colaboraram com a Itália e a Alemanha, mas não todos", intervém o intérprete albanês, Alban Beci, de 23 anos. Ele conta que seu avô, Sherif Bekteshi, era um "partisan" - participou da resistência à ocupação nazista. Ele morreu há 2 anos, aos 78. De uma esquina da Avenida Rainha Teuta, Azem Janusij aponta para um prédio marrom do outro lado do rio. "Eu tinha um apartamento no quinto andar daquele edifício", afirma ele. "Durante a guerra (1999), tive de fugir para cá." Gerente de fornecimento da companhia elétrica KEK, Janusij diz que a energia nunca falta aos sérvios, enquanto os albaneses convivem com blecautes constantes. "Os sérvios vêm falar das igrejas deles", desdenha Janusij. "Eles não sabem o que é igreja. Sou muçulmano e tenho respeito pelos católicos. Mas os ortodoxos não são civilizados." "Os albaneses não gostam de trabalhar, são conhecidos por seu gangsterismo, e é por isso que as regiões onde moram sempre foram as mais pobres da Europa", retruca, do outro lado do rio, o advogado sérvio Nikola Petrovic. "Comparada com Kosovo, a Sérvia é rica. Queremos continuar ligados a ela, porque ela nos ajuda." Numa economia fortemente estatizada, o governo sérvio paga os salários dos funcionários públicos sérvios e bolsas de estudo de 8 mil dinares (R$ 254) para os estudantes universitários. A administração de Kosovo, supervisionada pela ONU, contrabalança a ajuda sérvia com recursos doados sobretudo pelos EUA e pela Europa. "O que dói nos sérvios é que antes as oportunidades de trabalho sempre ficavam para eles", diz o motorista de ônibus albanês Artan Beca, de 36 anos. "Agora, o que importa é a qualificação. Eles não conseguem lidar com isso." Como em muitas casas e empresas, Arben Kamberi estampa uma bandeira da Albânia em sua loja de fotocópias. Ele diz que, quando a nova bandeira de Kosovo (fundo azul, com o mapa do território amarelo e seis estrelas brancas) estiver à venda, ele poderá pendurá-la também. "A Albânia é nossa nação, não o nosso Estado. Mas, no futuro, seria melhor se nos juntássemos. Ficaríamos mais estáveis." Kamberi, cujo pai aposentado foi morto pelos sérvios em 1999, quando saiu para comprar cigarros, conclui: "Os sérvios trouxeram a violência e estão tentando nos eliminar. É melhor que nós albaneses sejamos todos uma nação. Assim, não vão mais nos massacrar."

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