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‘Rotular de racista uma discordância é absurdo’

Para especialista e diplomata aposentado, populismo usa erros da esquerda para atacar populações fragilizadas e suprimir direitos 

Por Wilson Tosta
Atualização:

Um barco lotado de refugiados ilustra a sobrecapa de É preciso salvar os direitos humanos! (Perspectiva, 2018), do diplomata aposentado José Augusto Lindgren-Alves. Ex-integrante do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial da ONU, ele vê dessa forma – em perigo e em crise – a situação dos direitos humanos. No auge da doutrina, nos anos 90, após o fim da Guerra Fria, eles despertavam orgulho. Hoje, geram piadas, lamenta. 

O diplomata afirma que atacar direitos humanos dá voto não só no Brasil. Destaca que os populismos anti-imigração, expressos pelo governo de Donald Trump, nos EUA, e por alguns governos conservadores europeus, são manifestações evidentes da crise dos direitos humanos. A seguir, os principais trechos da entrevista com o diplomata, feita via e-mail.

José Augusto Lindgren-Alves foi embaixador do Brasil em Sófia, Budapeste e Sarajevo Foto: Centro de Relações Internacionais da Universidade de Vila Velha

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A Declaração Universal dos Direitos Humanos fará 70 anos em dezembro. O sr. avalia em seu livro que os direitos humanos estão em crise. Que crise? A crise dos direitos humanos se manifesta na falta de credibilidade que eles agora inspiram nas pessoas comuns. Quando não na irritação incontida que sua simples menção provoca entre não militantes. Comparo essa situação deplorável com o orgulho que o tema dava a quem trabalhava com ele no início dos anos 90. Quando terminou a Guerra Fria, os direitos humanos adquiriram popularidade extraordinária. Funcionavam como uma última utopia, capaz de orientar o mundo na direção do progresso social. Além de quase terem desaparecido do discurso oficial, os direitos humanos, relativizados novamente em diferentes culturas, são agora violados até em programas políticos. Seus defensores mais aguerridos, nas ONGs e movimentos sociais, utilizam-nos geralmente de maneira distorcida, em ações contraproducentes. A própria expressão “direitos humanos” virou alvo de chacotas, assunto de segunda categoria que só interessa a sonhadores. Tenho sentido isso na pele, de maneira crescente, no Brasil e no exterior.

O mau conceito no Brasil dos direitos humanos é parte dessa crise geral ou é algo apenas brasileiro? Não se trata de uma exclusividade brasileira, nem do período atual. No fim de nossa fase de transição democrática, após o regime militar, pesquisas antropológicas já mostravam que, na periferia de cidades como São Paulo, a população achava que direitos humanos eram coisa de intelectuais para proteger bandidos. Preferia-se qualquer ação que eliminasse os criminosos da área. Essa posição simplista, repetida por alguns políticos, tem hoje uma variante com inversão histórica curiosa: “Direitos humanos são coisa de comunista”. Infelizmente, a verdade é que, quando a violência inviabiliza a vida normal de qualquer cidadão, e isso começa nas áreas mais pobres, é difícil falar de direitos. Como os militantes de direitos humanos atuam mais visivelmente contra os excessos da polícia e outros agentes do Estado, a interpretação de que defendem apenas direitos de bandidos se generaliza, deixando de ser postura exclusiva da direita.

Não é estranho que no Brasil as pessoas se oponham a direitos que são delas? A violência de nossa sociedade, com suas causas profundas, é uma das razões evidentes disso. Outra é a obsessão de militantes e da mídia com a questão das identidades, como se isso fosse a grande preocupação nacional. É claro que as identidades diferentes podem ser assumidas, devendo ser respeitadas e protegidas. É justo que se trabalhe por isso, inclusive na esfera política, mas não de uma forma radicalmente ressentida, que coloque as diferenças acima da igualdade real. As questões de minorias são às vezes inegavelmente graves, mas não podem deixar de lado os problemas emergenciais que afetam a cidadania. 

Ser contra direitos humanos dá voto no Brasil? Falar mal dos direitos humanos, atualmente, dá voto sim, e não somente no Brasil. Basta olhar à nossa volta, em alguns países da América do Sul, ou um pouco mais longe, nos Estados Unidos, na Europa, especialmente na Áustria, Hungria e Polônia, na Ásia, em especial nas Filipinas. E vermos de que maneira a direita contrária aos direitos de não cidadãos, os populistas da pós-verdade e outros oportunistas astutos têm chegado ao poder. Inventam bodes expiatórios para os males daquilo que chamam cidadania autêntica. Responsabilizam imigrantes pobres, refugiados, seguidores de religiões exóticas, “negros”, “mouros”, “hispanos”, árabes e outros “estrangeiros” pela escassez de empregos para os nacionais, o crime, a sujeira, o fanatismo e as drogas. E, como que para ajudar políticos oportunistas, os próprios defensores de direitos humanos ditos progressistas têm hoje um discurso parcial, contrário ao universalismo constitucional da cidadania. Transformam o politicamente correto num instrumento de patrulha intolerante, agressiva e também suicida. 

Em seu livro, o sr. aponta ações à direita e à esquerda que estariam minando a luta pelos direitos humanos. Que ações são essas? O problema mais grave, que eu já pressentia quando os direitos humanos estavam no apogeu, nos anos 90, foi a contradição entre sua reafirmação em Viena, simultaneamente à afirmação do Consenso de Washington, dos organismos financeiros internacionais, decretando o fim do Estado-Previdência. As ações contraproducentes da esquerda dita progressista são todas decorrentes da radicalização atual da questão das identidades como centro das atenções. Abandona-se assim a ideia universalista dos direitos humanos por uma série crescente de cobranças que eliminam o objetivo da igualdade de todos. Lutar por igualdade e medidas reparadoras de uma inferioridade imposta é uma coisa, que apoio enfaticamente. Demonstrar uma hipersensibilidade forçada para fatos e obras do passado com olhos do presente é outra. Lutar pela igualdade de direitos dos diferentes é certo. Rotular qualquer discordância de racista, machista, misógina ou homofóbica é absurdo. 

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Como as mudanças nos EUA, com o governo Donald Trump, e na Europa, com os populismos anti-imigração, afetam essa crise? Elas são as manifestações mais evidentes e consequentes dessa crise. A crise não é apenas brasileira. Afinal, os Estados Unidos e, atualmente em menor grau, a Europa são os modelos de tudo o que fazemos. Especialmente na área dos direitos humanos. Os efeitos das mudanças nos Estados Unidos e na Europa não são ruins apenas para o Brasil. Toda a “cultura” do mundo globalizado pós-Guerra Fria, inclusive dos BRICS, vem desses dois polos.

A inclusão, entre os direitos humanos de direitos que são importantes, mas não universais, embora afetem determinados grupos, está levando à perda de foco? O Direito Internacional dos Direitos Humanos prevê a adoção temporária de medidas especiais em favor de determinados grupos em situação de inferioridade até que as condições reais para o exercício dos direitos universais sejam igualadas. É o caso, por exemplo, das cotas para minorias raciais ou étnicas em universidades. Ou cotas para mulheres em instituições. Tais cotas passam a ser direitos, no local de sua adoção, mas não podem ser confundidos internacionalmente com a categoria genérica dos direitos humanos, consagrados na Declaração de 1948. O desvio de foco é evidente e enfraquece o conjunto. Hoje, a militância se dedica quase exclusivamente aos direitos de minorias, engendrando confusão e a multiplicação incessante de normas. 

Foi essa ênfase no particular que levou à multiplicação de mecanismos e instrumentos do sistema de direitos humanos da ONU? Sim, foi sobretudo isso. Os grupos específicos, que exigem atenção particularizada, são praticamente infinitos. Se para cada um houver um mecanismo e normas especiais, o conceito abrangente de direitos humanos perde o sentido.

A ONU perdeu força na luta pelos direitos humanos? A ONU é também vítima do discurso dominante. Perdeu a força, sim, que sempre foi apenas simbólica, persuasiva, na área dos direitos humanos. Ela é também vítima daqueles que contribuem com a maior parte do orçamento e se encontram em posição de confrontação com a maioria. No comitê que integrei por dezesseis anos, pude sentir a influência relativa que tem o Secretariado. Notei, porém, em especial, a responsabilidade dos Estados e ONGs, que usam a organização mais para divulgar suas posturas no exterior e para o público interno do que para negociar avanços nos assuntos. 

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A crise dos dieitos humanos é parte de uma crise maior, da democracia?  A crise dos direitos humanos é, talvez, o aspecto mais simbólico do desapontamento geral do mundo com a democracia existente. 

QUEM É:

Diplomata aposentado, ex-embaixador do Brasil em Sófia, Budapeste e Sarajevo, ex-cônsul-geral em San Francisco e Barcelona. Foi Chefe da Divisão dos Direitos Humanos e o primeiro diretor-geral do Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais do Ministério das Relações Exteriores. Por 16 anos (2002-2017) integrou como membro o Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial – CERD – na ONU, em Genebra. Em 2017, foi Secretário-Executivo do Instituto de Políticas Públicas de Direitos Humanos (CDDPH) do Mercosul, em Buenos Aires. 

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