Ruanda sai da barbárie e vira modelo 25 anos depois de genocídio

Sem trocas no poder, país se perfila como potência local após massacre de 800 mil

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Por Ana Carolina Sacoman
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Vinte e cinco anos depois do genocídio que exterminou pelo menos 800 mil dos seus 7 milhões de habitantes e na sequência mandou para o exílio parcela considerável de sua força de trabalho, Ruanda vive em ritmo de crescimento acelerado – 8,9% de 2017 para 2018. Por motivos óbvios, tem 60% da população abaixo dos 30 anos e um dos Parlamentos mais femininos do mundo (64% de mulheres na Câmara e 40% no Senado). É ainda considerado um dos lugares mais seguros da África e também um dos mais estáveis politicamente.

Caveiras e objetos pessoais de vítimas do genocídio de Ruanda expostos em Memorial Gisozi, em Kigali, Ruanda Foto: REUTERS/Baz Ratner

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Reeleito em 2017, o presidente Paul Kagame, ex-líder rebelde da etnia tutsi, pertencente à Frente Patriótica de Ruanda (FPR), está no terceiro mandato e é alvo de críticas de analistas internacionais após um referendo de 2015 tornar possível sua reeleição por mais duas vezes. Com isso, ele pode tentar ficar no poder até 2034. Ele chegou ao cargo em 2000 e foi eleito pela primeira vez em 2003. 

“O renascimento de Ruanda após a tragédia do genocídio espanta o mundo”, afirma a escritora Scholastique Mukasonga, que perdeu praticamente toda a família durante os massacres. “Ruanda se tornou modelo para os países africanos. O visitante constata o desenvolvimento econômico, a luta contra a corrupção, o lugar que as mulheres têm. A segurança que reina em Kigali (capital) leva as grandes empresas a estabelecerem lá suas sedes. Ruanda sonha ser a pequena Cingapura africana”, diz, referindo-se à ilha asiática que se tornou um dos países mais ricos do mundo, sem chegar a ser uma democracia. 

Em 6 de abril de 1994, com a derrubada do avião do presidente hutu, Juvénal Habyarimana, o plano de extermínio dos tutsis, etnia minoritária que havia governado o país desde pelo menos o século 18 até 1959, foi colocado em prática. Grupos de assassinos armados com facões e machetes tomaram as ruas, incitados pelo novo governo. Estima-se que três em cada quatro tutsis, entre homens, mulheres e crianças, foram massacrados em cem dias, além de 30 mil hutus moderados.

Criança cobre o nariz por causa do mau cheiro dos corpos em decomposição em Ruanda, em 1994 Foto: REUTERS/Corinne Dufka

Relatos e fotos de corpos amontoados em igrejas, escolas e hospitais – ou simplesmente deixados nas ruas – chocaram o mundo. Em vez de intervir, a ONU retirou 90% dos seus 2,5 mil soldados do país logo após o início das matanças. O massacre só acabou em julho de 1994, quando o Exército rebelde tutsi comandado por Kagame tomou Ruanda e instituiu novo governo. 

“Ignorou-se o objetivo político da manutenção do poder pelos hutus, naturalizando o conflito, ao defini-lo como tribal, com raízes de ódios ancestrais e, por isso, quase impossível de ser resolvido”, afirma Leila Leite Hernandez, professora de História da África e Diretora do Centro de Estudos Africanos da USP.

Políticas de reconciliação, em um esforço de reconstrução do país, vigoram até hoje. Desde 1994, é vetada a diferenciação entre hutus e tutsis – carimbada nas cédulas de identidade a partir de 1926 pelos colonizadores belgas – e a Constituição de 2003 proíbe a apologia e a negação do genocídio. Grupos de apoio a assassinos e sobreviventes promoviam, até pouco tempo atrás, sessões públicas de perdão.

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Menina observa uma vala comum com centenas de corpos em Ruanda, em 1994, durante o genocídio Foto: REUTERS/Corinne Dufka

Nas escolas, cursos sobre genocídio foram incorporados ao currículo nacional, do ensino secundário à universidade, apesar de não haver uma família que não tenha vivido os horrores de 1994, de um ou outro lado.“Pensei muitas e muitas vezes que morreria”, lembra a escritora Immaculée Ilibagiza, que passou mais de 90 dias escondida com outras sete mulheres em um banheiro de 1,20 metro por 1 metro. Com exceção de um irmão, perdeu toda a família. 

Levar justiça às vítimas também não foi tarefa fácil. Ao fim do genocídio, restavam vivos 5 juízes e cerca de 50 advogados em todo o país. O Poder Judiciário teve de ser reconstruído. Em 2002, o governo reabilitou as cortes “gacaca”, instrumento de resolução de conflitos anterior ao colonialismo.

De acordo com Jean Damascene Bizimana, secretário executivo da Comissão Nacional de Luta contra o Genocídio, 1,9 milhão de casos foram analisados dessa forma em 10 anos, resultando em 500 mil presos – 10% ainda cumprem pena. “Os tribunais lançaram as bases para a paz, a reconciliação e a unidade de Ruanda”, diz. 

Os mandantes dos crimes ficaram com o Tribunal Penal Internacional para Ruanda, criado pela ONU em novembro de 1994. Em 2015, quando encerrou os trabalhos, havia julgado 93 pessoas e condenado 64. Foi a primeira Corte internacional, desde Nuremberg, a condenar um chefe de Estado por genocídio (o primeiro-ministro Jean Kambanda, sentenciado à prisão perpétua em 1998), o primeiro tribunal a considerar estupro e violência sexual como formas de perpetração de genocídio e também o primeiro a julgar o papel da mídia na incitação da matança.

Corpos parcialmente preservados de vítimas do genocídio de Ruanda Foto: REUTERS/Antony Njuguna

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“O tribunal trouxe justiça às vítimas e aos sobreviventes, acusando indivíduos e ouvindo os poderosos relatos de mais de 3,5 mil testemunhas que asseguraram que a comunidade internacional nunca esquecerá o que aconteceu em Ruanda”, diz o juiz Vagn Joensen, presidente da Corte internacional de 2007 a 2015 e hoje juiz do Tribunal Residual da ONU. 

Todo esse esforço por reconciliação chega renovado às novas gerações. Ruandesa que mora no Brasil desde os 3 anos, Axana Uwimana, de 25 anos, resume: “As pessoas simplesmente são o que são, hutus, tutsis, não tem diferença. Para o ruandês, ele é apenas isso: ruandês”.

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