Rudy Giuliani, o novo faz-tudo do presidente Trump 

Funcionários demonstraram preocupações sobre o caminho das relações EUA-Ucrânia após reportagens e entrevistas concedidas pelo advogado, nas quais ele começou a defender opiniões que não eram parte da política de segurança dos EUA

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Por Redação
Atualização:

WASHINGTON - A tentativa de Donald Trump de pressionar o presidente da Ucrânia por informações sobre o filho de Joe Biden foi o ápice de uma luta interna no governo americano que deixou de lado autoridades de segurança nacional e deu poder a aliados políticos de Trump, principalmente o advogado pessoal do presidente, Rudolph Giuliani.

Segundo apurou o Washington Post, desde o começo do ano, Giuliani se tornou uma espécie de Michael Cohen, uma versão presidencial do ex-advogado pessoal de Trump, responsável por algumas das manobras jurídicas mais ousadas de Trump.

O advogado Rudy Giuliani, ex-prefeito de Nova York, ao lado do ex-presidente DonaldTrump; Giuliani foi intimado a depor no âmbito da investigação sobre a invasão ao Capitólio americano Foto: AP/Carolyn Kaster

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Giuliani ficou responsável por explorar o relacionamento dos EUA com Kiev, disseram ao Times funcionários do governo americano. Tudo começou no início deste ano, com a remoção abrupta do embaixador dos EUA na Ucrânia, a exoneração de altos funcionários do Conselho de Segurança Nacional e a suspensão de uma ajuda milionária dos departamentos de Defesa e Estado.

Autoridades descreveram ao New York Times reuniões tensas sobre a Ucrânia entre autoridades de Segurança Nacional na Casa Branca, que antecederam o telefonema do presidente em 25 de julho, sessões que levaram alguns participantes a temer que Trump e seus conselheiros parecessem preparados para usar a influência dos EUA com o novo líder da Ucrânia para o ganho político de Trump.

À medida que essas preocupações se intensificaram, algumas autoridades mais graduadas trabalharam nos bastidores para adiar uma reunião de Trump ou o telefonema para o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, por preocupação de que Trump usasse a conversa para pressionar Kiev por informações prejudiciais sobre seu potencial rival democrata na corrida de 2020, o ex-vice-presidente Joe Biden e seu filho, Hunter.

“Muita gente estava tentando impedir que uma reunião acontecesse porque não seria focada na relação entre Ucrânia e EUA”, disse ao Times um ex-funcionário, falando sob condição de anonimato para discutir o assunto delicado.

Autoridades da Casa Branca contestaram a afirmação, dizendo que essas preocupações não foram levantadas nas reuniões do Conselho de Segurança Nacional e que o foco de Trump era instar a Ucrânia a erradicar a corrupção. Um porta-voz da Casa Branca não respondeu a um pedido de comentário.

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Mas Donald Trump admitiu nesta semana que havia feito exatamente o que seus conselheiros temiam, usando a ligação telefônica para levantar a questão de Biden com Zelensky. 

Ligação causou onda de consternação

A onda de consternação desencadeada por essa ligação levou um integrante da comunidade de inteligência dos EUA a enviar uma queixa formal à Comissão de Inteligência da Câmara, desencadeando uma sequência de eventos que agora inclui o início de uma investigação de impeachment na Casa.

Embora o relatório de denunciantes se concentre na chamada Trump-Zelenski, autoridades familiarizadas com seu conteúdo disseram que ela inclui referências aos esforços de Giuliani para influenciar nas relações EUA-Ucrânia.

As autoridades que falaram ao Times descreveram uma atmosfera de intensa pressão dentro do Conselho de Segurança Nacional e de outros departamentos desde que a denúncia veio à tona. Um funcionário descreveu o clima como uma “sangria”.

Os conselheiros mais próximos de Trump, incluindo o chefe de gabinete interino da Casa Branca, Mick Mulvaney, que recebeu a ordem de Trump para suspender a ajuda à Ucrânia, também são cada vez mais alvos de críticas internas. 

"Rudy - ele fez tudo isso", disse uma autoridade dos EUA ao Times. "Isso mostra que ele está se injetando no processo".

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Opiniões não eram parte da política de segurança dos EUA

Vários funcionários demonstraram preocupações sobre o caminho das relações EUA-Ucrânia após reportagens e entrevistas concedidas por Giuliani, nas quais ele começou a defender opiniões que não eram parte da política de segurança dos EUA.

Giuliani parece ter identificado em Zelenski, um neófito político eleito presidente da Ucrânia em abril e empossado em maio, um potencial aliado em duas frentes políticas: punir os responsáveis por vazamentos de informações dentro do governo ucraniano sobre a corrupção relacionada à Ucrânia e envolvendo Paul Manafort, ex-assessor de trump, e entrega de munição política contra Biden.

Após a conclusão da investigação do procurador especial Robert Mueller sobre o papel da Rússia nas eleições de 2016, Giuliani voltou sua atenção para a Ucrânia, disseram autoridades, e logo começou a pressionar por mudanças de pessoal na embaixada enquanto procurava reuniões com os subordinados de Zelenski. 

Ele também tinha seus próprios emissários na Ucrânia que estavam se reunindo com autoridades, organizando reuniões para ele e enviando informações que ele poderia usar nos Estados Unidos. A embaixadora dos EUA na Ucrânia, Marie Yovanovitch, tornou-se o principal alvo de Giuliani.

Yovanovitch, funcionária de longa data do Serviço de Relações Exteriores do Departamento de Estado, chegou à Ucrânia como embaixadora no final do governo Obama, mais de dois anos depois do levante na Praça da Independência de Kiev derrubar o governo de inclinação russa.

O empresário George Soros Foto: Luke MacGregor / Reuters

Embora ela fosse amplamente respeitada na comunidade de segurança nacional por seus esforços em incentivar a Ucrânia a enfrentar a corrupção, Giuliani atacou Yovanovitch com acusações sérias, incluindo que ela desempenhava um papel secreto na exposição de Manafort e fazia parte de uma conspiração orquestrada pelo financista liberal George Soros

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"Ela deveria fazer parte da investigação como parte do conluio", disse Giuliani em uma entrevista recente ao Washington Post, acrescentando que "ela agora está trabalhando para Soros". Yovanovitch ainda é funcionária do Departamento de Estado e membro da Universidade de Georgetown. Ela se recusou a comentar.

Giuliani também disse que todo o Departamento de Estado era um problema, e autoridades familiarizadas com suas ações dizem que ele regularmente informava Trump sobre seus esforços na Ucrânia. 

Muitas das acusações de Giuliani foram recicladas ou ecoadas por meios de comunicação de direita. No final de março, o filho do presidente Trump ampliou a campanha com um tuíte pedindo a remoção da "embaixadora de Obama na Ucrânia".

Yovanovitch, que seria exonerada em julho depois de uma missão de três anos, foi prematuramente mandada de volta a Washington, uma medida que desconcertou e enervou altos funcionários do Departamento de Estado e da Casa Branca, disseram autoridades.

Poucos dias depois de sua queda, em 9 de maio, Giuliani assumiu um papel diplomático não autorizado, anunciando planos de viajar para a Ucrânia para pressionar por investigações que “seriam muito, muito úteis para o meu cliente e podem vir a ser úteis ao meu governo”.

Giuliani cancelou a viagem em meio à reações negativas, mas mais tarde se encontrou com um dos principais assessores de Zelenski em Madri e pressionou pela ajuda da Ucrânia contra Biden.

Em uma entrevista à Fox News em 19 de maio, Trump repetiu alegações de que o então vice-presidente Biden havia coagido a Ucrânia a suspender uma investigação sobre o proprietário de uma empresa de energia, Burisma, na qual o filho de Biden, Hunter, era membro do conselho.

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Hunter e seu pai, Joe Biden, na cerimônia de posse de Obama, em 2009 Foto: Carlos Barria/Reuters

As alegações eram infundadas. Embora Hunter Biden tenha servido no conselho da Burisma por cinco anos - uma decisão questionável dada a posição influente de seu pai - ele nunca foi acusado de qualquer irregularidade pelas autoridades ucranianas. 

A investigação foi arquivada antes de qualquer ação do vice-presidente, e os esforços de Biden-pai envolveram a remoção de um promotor amplamente criticado pelo Ocidente por não combater a corrupção.

No entanto, Trump é acusado de ter usado sua ligação com Zelenski em 25 de julho para fazer com que a Ucrânia reative essa investigação inativa e a amplie para incluir possíveis irregularidades de Biden.

'País que luta para sobreviver à agressão russa'

Em Washington, oficiais fora do círculo mais próximo de Trump, os consternados com a deposição de Yovanovitch, reagiram com crescente alarme sobre as atividades subsequentes de Giuliani.

O então conselheiro de segurança nacional John Bolton ficou indignado com o que chamou de “terceirização de um relacionamento com um país que luta para sobreviver à agressão russa”, disseram autoridades. 

Mas àquela altura seu relacionamento com Trump estava tenso, e nem ele nem seus assessores podiam obter respostas diretas sobre a agenda de Giuliani na Ucrânia, disseram autoridades. Bolton se recusou a comentar.

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Giuliani disse ao Post que uma de suas ligações com um importante assessor ucraniano foi parcialmente organizada por Kurt Volker, um funcionário do Departamento de Estado, e que ele informou ao departamento depois.

Os funcionários da Embaixada dos EUA em Kiev foram igualmente privados de informações, mesmo diante de perguntas dos ucranianos sobre se Giuliani era um representante designado. 

Em entrevista à Fox News na terça-feira, Giuliani disse que havia sido recrutado pelo Departamento de Estado para intervir na questão da Ucrânia. “Você sabe o que eu fiz e a pedido de quem? O Departamento de Estado ”, disse ele, segurando o celular para indicar que os registros de chamadas apoiariam sua afirmação. Ele também disse que começou a investigar a questão no final de 2018, após uma visita de um investigador que ele não identificou.

A percepção de uma agenda paralela e oculta se intensificou no meio do ano, quando autoridades do Conselho de Segurança, Pentágono e Departamento de Estado começaram a reagir a rumores de que centenas de milhões de dólares em ajuda militar e de inteligência à Ucrânia estavam sendo misteriosamente represados.

"Nunca houve ordens, nenhuma orientação formal da Casa Branca para nenhuma das agências", disse uma autoridade dos EUA familiarizada com o assunto. "E o Conselho de Segurança estava coçando a cabeça: como isso é possível?"

Autoridades do Conselho de Segurança, incluindo Tim Morrison, que substituiu Fiona Hill como diretora sênior de assuntos europeus e russos, começaram a organizar reuniões para tentar entender essas “forças ocultas” que afetam a política da Ucrânia, disseram autoridades ao Times.

Mas, mesmo assim, respostas claras se mostraram ilusórias. Os funcionários foram informados de que o dinheiro estava sendo bloqueado pelo Escritório de Administração e Orçamento, sem nenhuma explicação. "Foi bizarro", disse o funcionário.

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Outro ex-funcionário familiarizado com as reuniões disse que os participantes começaram a apresentar questões preocupantes sobre o que estava levando a Casa Branca a reter a ajuda, bem como uma reunião que Trump prometeu a Zelensky.

Embora a questão de uma ligação ou pressão sobre Zelensky nunca tenha surgido nas discussões formais do Conselho de Segurança, os participantes começaram a acreditar que Trump estava "retendo a ajuda até que a lhe desse algo sobre Biden ou Manafort".

Foi nesse período, em julho, que algumas autoridades começaram a questionar a prudência de uma ligação de Trump para Zelensky. Em parte, havia um desejo de adiar até depois das eleições parlamentares da Ucrânia. Mas, atentos à agitação e influência de Giuliani, alguns temiam que, mesmo que Trump fosse aconselhado antes da chamada, o presidente não seria capaz de resistir a pressionar Zelensky por levantar podres de Biden.

Em 24 de julho, Mueller testemunhou perante o Congresso sobre o resultado da investigação a respeito da Rússia, uma investigação que ameaçara Trump por grande parte de sua presidência e estava focada em saber se ele havia conspirado com Moscou para influenciar as eleições nos EUA.

No dia seguinte, Trump conversou com Zelensky em uma ligação, e as vagas dúvidas que surgiram nos últimos cinco meses ficaram evidentes. Entre aqueles que ouviram a ligação ou estavam em condições de ver uma transcrição, a persistência do presidente com Zelenski sobre a investigação de corrupção marcou o cruzamento de um limiar perigoso. / NYT

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