07 de fevereiro de 2016 | 02h00
A crise política no Haiti, agravada este ano pelo cancelamento do segundo turno da eleição presidencial, é um reflexo da democracia frágil no país, que tenta superar um histórico de instabilidade desde a retirada de Jean-Bertrand Aristide da presidência, em 2004, quando a força de paz da ONU (Minustah) foi estabelecida.
Agora, com o fim do mandato de cinco anos do presidente Michel Martelly – que enfrentou acusações de fraude eleitoral e corrupção e governou durante o último ano por decreto – o Haiti deve voltar a ser gerido por um governo interino, o que não significa que a solução da grave turbulência esteja próxima.
Ontem, Martelly assinou um acordo com os chefes da Câmara dos Deputados e do Senado para designar um governo de transição. Assim, o Congresso Nacional elegerá um novo presidente “nos próximos dias”.
A saída de Martelly é vista pela oposição haitiana e por especialistas como apenas um primeiro passo para impedir que protestos violentos tomem conta do país, mas é preciso haver mudanças na estrutura do governo e até uma reforma eleitoral – principalmente no Conselho Eleitoral Provisório (CEP) – para levar novamente credibilidade às instituições.
“O pré-requisito mínimo é que o presidente Martelly deixe o cargo. Isso pode ajudar a restaurar a confiança no processo democrático e a reforçar o compromisso com uma transferência pacífica de poder”, afirma Robert Muggah, diretor de Pesquisa do Instituto Igarapé. “Mas para o Haiti seguir em frente, é preciso haver processos eleitorais planejados pelo povo e cujas decisões sejam respeitadas. O CEP é fundamental para isso.”
O professor de Relações Internacionais e referência em Haiti da Universidade George Washington, Robert Maguire, vai além. “A comunidade internacional, em particular os EUA, precisa se distanciar do objetivo de apenas promover eleições (no Haiti) e apoiar um verdadeiro processo de democracia”, disse. “Isso significa que é preciso mudar o contínuo apoio ao processo fraudulento que começou com Martelly e passar a apoiar o que a maioria dos haitianos quer: um processo político livre, justo e transparente.”
O segundo turno da eleição presidencial, que deveria ter ocorrido no dia 24, foi adiado após o candidato segundo colocado no primeiro turno, o opositor Jude Celestin, desistir de concorrer alegando fraudes na votação do dia 25 de outubro. Desde a desistência dele, diversas manifestações violentas ocorreram no país pedindo a saída de Martelly do poder e novas eleições desde o início. “É necessário que a comissão de transição defina um plano para as próximas eleições”, argumenta Muggah. “É preciso também que haja transparência.”
O Instituto realizou pesquisas domiciliares em 135 seções eleitorais antes e depois do primeiro turno e chegou à conclusão de que três quartos da população não confiam na atual administração. A maioria das pessoas afirmou ter votado em Celestin ou em Moise Jean Charles – opositor que ficou em terceiro lugar na votação. “A maioria acha que o vencedor ‘oficial’ do primeiro turno, o candidato apoiado pelo governo, Jovenel Moise, não está correto. Apenas 6% dos entrevistados disseram ter votado nele. O CEP anunciou que ele havia tido 33% dos votos”, diz Muggah.
Além disso, a pesquisa realizada com 8 mil haitianos entre os dias 17 e 22 de janeiro mostra que as denúncias de fraude afetaram a opinião popular e apenas 3% dos entrevistados planejavam votar do segundo turno.
Segundo Muggah, as formas utilizadas para fraudar a eleição no Haiti vão desde a intimidação de eleitores até o uso de cédulas falsas e outros procedimentos de votação irregulares. Fiscais estimam que cerca de 60% do 1,5 milhão de votos podem ter envolvido os chamados “mandataires”, que podem votar em qualquer seção sem estar na lista de eleitores.
O acordo de ontem sobre um governo interino prevê que políticos poderão se apresentar ao Congresso e se candidatar à presidência. Martelly havia sugerido que o cargo fosse ocupado temporariamente pelo titular do Senado, Jocelerme Privert, ou pelo da Corte Suprema, Jules Cantave.
Segundo o embaixador brasileiro em Porto Príncipe, Fernando de Mello Vidal, os grupos opositores também pediam que alguém do poder Judiciário assumisse o governo haitiano até às novas eleições.
O importante, segundo a chefe da Minustah, Sandra Honoré, é o que o processo transcorra pacificamente. “Fazemos um apelo para que os partidos rechacem a violência.”
Alguns haitianos protestaram contra a forma como o acordo sobre o governo interino foi feito porque envolveu a participação de uma missão da Organização dos Estados Americanos (OEA). “Há críticas de grupos da sociedade contra a presença da OEA, mas o chefe da missão me explicou claramente que eles não estavam aqui para mediar, mas para apoiar e exigir que os atores cheguem a um acordo com base em consultas internas”, afirma Honoré.
O futuro da presença da Minustah no país depende da estabilidade da região e, portanto, da eleição presidencial. O atual mandato da missão foi estendido até 15 de outubro, mas no ano passado o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, afirmou que após a posse do novo presidente enviaria uma equipe para avaliar possíveis ajustes à presença da missão depois de 2016.
Após a divulgação do resultado primeiro turno das eleições presidenciais, em 25 de outubro, o opositor Jude Célestin se negou a participar da segunda rodada de votação contra o candidato do governo Jovenel Moise. A nova votação, marcada para 24 de janeiro, foi adiada em meio ao aumento de protestos violentos em todo o país.Para tentar solucionar a crise política, o presidente Michel Martelly prometeu deixar o poder desde que haja um acordo político com a oposição. O premiê Evans Paul renunciou ao cargo em um aceno aos opositores, mas as opções oferecidas pelo partido de Martelly para substituí-lo não agradaram e o presidente rejeitou sua demissão.Desde 2004 o país tenta se estabilizar, com a presença de tropas de paz da ONU. Em 2010, um terremoto devastou o país e matou até 350 mil pessoas.
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