Segregação nos EUA afeta direito ao voto dos negros

Cinco décadas após morte de Martin Luther King, acesso às urnas ainda é luta de grupos de direitos civis

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Por Cláudia Trevisan , ATLANTA e EUA
Atualização:
Entrada do Centro de Direitos Civis e Humanos em Atlanta Foto: Cláudia Trevisan / Estadão

Chris Mangum tem 37 anos, paga impostos, mas nunca conseguiu votar. Condenado a 6 anos de prisão na juventude, ele perdeu o direito de eleger seus representantes, mesmo depois de cumprir sua pena. Os EUA são um dos poucos países democráticos nos quais existe esse tipo de restrição, que afeta os negros de maneira desproporcional. Com 13% da população, eles representam 37% dos 6,1 milhões de detentos e ex-detentos sem direitos políticos.

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Cinco décadas depois da morte de Martin Luther King Jr., o acesso às urnas continua na pauta do movimento pelos direitos civis. Além do veto aos que vão à prisão, vários Estados do Sul adotaram leis que dificultaram o exercício do voto por pobres e por minorias depois de 2013, quando a Suprema Corte derrubou parte da Lei do Direito do Voto, aprovada em 1965. “Eu terminei de cumprir minha pena há 23 anos, mas nunca conquistei direito ao voto. Eu tentei me registrar para votar na reeleição de (Barack) Obama, mas não aceitaram”, disse Bruce Morris, negro de 51 anos.

O EUA experimentaram um aumento de 500% em sua população carcerária nos últimos 40 anos, em grande parte como consequência da “guerra às drogas” desencadeada nos anos 80. 

Estudo do Sentencing Project, com base em dados oficiais, indica que homens negros enfrentam probabilidade seis vezes maior que os brancos de ser presos. Uma vez presos, têm mais risco de serem condenados e de receberem penas mais elevadas.

“A terra dos livres é a capital mundial do encarceramento. Proporcionalmente, há mais negros nas prisões nos EUA do que havia na África do Sul no auge do apartheid”, afirmou Raphael Warnock, pastor da Igreja Batista Ebenezer de Atlanta, onde King e seu pai pregaram.

De acordo com Warnock, a pobreza, o encarceramento em massa e as restrições no direito ao voto se entrelaçam em um círculo vicioso que marginaliza grande parte da população negra. Os números confirmam as suspeitas de que a raça influencia a seleção dos que entram no sistema prisional. 

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Apesar de não haver diferenças significativas na frequência do uso de drogas entre negros e brancos, os primeiros foram os principais alvos da “guerra” desencadeada nos anos 80. De 1980 a 2000, a proporção de prisões de negros relacionadas a drogas subiu de 6,5 para 29,1 por 1.000 habitantes. Entre os brancos, a evolução foi de 3,5 para 4,6, segundo dados do Sentencing Project.

A discrepância se deve em parte à lei dos anos 80 que estabeleceu pena mais severa aos que eram pegos com crack, droga mais usada pelos negros, do que com cocaína, preferida pelos brancos. Quem tivesse 1 grama de crack seria condenado como se portasse 100 gramas de cocaína. Em 2010, a proporção foi reduzida a 1 para 18.

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Citando o título do livro de Michelle Alexander, recém-lançado no Brasil, Vicki Crawford disse que o encarceramento em massa é a “nova segregação” nos EUA. “O sistema criminal e as prisões são as formas modernas de subjugação racial”, afirmou Crawford, diretora da coleção de documentos de King mantida pela Faculdade Morehouse, onde o líder do movimento pelos direitos civis estudou.

Criada por ex-escravos depois da Guerra Civil (1861-1865), a Morehouse integra o conjunto das históricas instituições de ensino negras. A segregação acabou, mas 96% de seus alunos continuam a ser afro-americanos. Estudante de História, Je’Lon Alexander, de 21 anos, contou que a faculdade é um “lugar seguro” para homens negros. “Nós não teríamos as mesmas oportunidades em uma instituição majoritariamente branca.”

Je'Lon Alexander, aluno da Faculdade Morehouse, criada por ex-escravos durante a segregação racial Foto: Cláudia Trevisan / Estadão

As barreiras impostas ao exercício do voto não têm natureza racial explícita, mas afetam de maneira desproporcional os pobres, entre os quais os negros são maioria. A decisão acabou com a exigência de que Estados do Sul submetessem à aprovação federal mudanças em suas leis eleitorais. 

Desde então, vários governos estaduais adotaram regras que exigem documentos com foto. Os EUA não possuem uma carteira de identidade nacional e o documento mais comum é a carteira de motorista, que só tem quem sabe dirigir.

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No entanto, a forma mais abrangente de supressão do direito ao voto é a proibição de seu exercício pelos que são condenados. Em 48 dos 50 Estados americanos, os que estão na prisão não podem votar. A proibição continua durante a liberdade condicional em 34 deles, enquanto em 12 o veto é vitalício. Antes da explosão na população carcerária, 1 milhão de condenados não podia votar. 

“Os EUA têm a mais extrema restrição do tipo entre países democráticos e ela afeta os negros de forma desproporcional”, disse Marc Mauer, diretor executivo do Sentencing Project. Segundo ele, dos 6,1 milhões proibidos de votar, metade já cumpriu sua pena.

A Flórida possui um dos mais severos índices de supressão de voto, com 1,7 milhão de condenados proibidos de ir às urnas pelo resto da vida. Desses, 500 mil são negros, o equivalente a 21% da população adulta afro-americana. O Estado foi crucial para a vitória de George W. Bush na eleição do ano 2000 e contribuiu para a chegada de Donald Trump à Casa Branca em 2016. 

Eleitores negros que foram às urnas optaram em peso pela democrata Hillary Clinton na disputa com Trump. “O impacto dessas formas modernas de supressão do voto é fenomenal”, ressaltou Crawford.

O Alabama mudou sua legislação no ano passado e restringiu o número de crimes que podem levar à perda vitalícia do direito de voto. No entanto, Mauer disse que não é fácil identificar quem pode ou não votar. Mangum, que foi mandado à prisão quando era jovem, nunca foi às urnas. “Eu tentei, mas disseram que eu não podia votar.”

Em 1968, a notícia que incendiou comunidades negras nos EUA

No dia 4 de abril de 1968, Charles Mauldin caminhava pelas ruas de Boston quando ouviu a notícia: Martin Luther King Jr., líder do movimento contra a segregarão racial, havia sido assassinado a tiros na sacada do hotel em que estava hospedado em Memphis, no Tennessee. “Fiquei perplexo, paralisado. Não podia acreditar.”

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Charles Mauldin na sala de sua casa, em Birmingham, Alabama. Em 1965, ele participou da marcha de Selma a Montgomery, liderada por Martin Luther King Jr. Foto: Cláudia Trevisan / Estadão

Cinco décadas depois, ele experimenta outra forma de incredulidade, ao presenciar o que classifica como um “assalto” aos direitos civis de minorias e o ressurgimento da retórica racista nos EUA, estimulado pela linguagem do presidente Donald Trump. Seu maior reflexo foram as manifestações de supremacistas brancos, no ano passado.

Adolescente nos anos 60, Mauldin viveu a experiência da segregação que dividiu brancos e negros em áreas públicas: transporte, escolas, cinemas, teatros, restaurantes, bebedouros e banheiros. “Eu me lembro da indignidade de ser intimidado todos os dias”, disse Mauldin, de 70 anos, que participou da marcha de Selma a Montgomery, liderada por King, em 1965. A reversão apontada por ele não é na direção do racismo institucionalizado e se manifesta na adoção de políticas que agravam dois dos principais problemas que hoje afetam negros: a violência policial e o encarceramento em massa.

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