Seja bem-vindo ao século da defesa civil

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Por MAC MARGOLIS
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E o ano começou em prantos. Os nova-iorquinos, ainda em choque após a nevasca de dezembro, foram novamente sacudidos por uma tempestade na semana passada e já contabilizam um inverno inteiro de neve (726 mm) somente desde o Natal. Enchentes históricas assolam Colômbia, Venezuela e Brasil, matando milhares e deixando centenas de milhares sem abrigo. Um trecho da Austrália do tamanho da Alemanha e da França somadas está debaixo d"água. As sirenes também soam nas Filipinas, Sri Lanka e no sul da Índia, todos às voltas com inundações. Onde quer que se olhe, o clima está em revolta aberta. Alguns cientistas apressaram-se em atribuir as calamidades à mudança climática global. Outros culpam La Niña, a metade chuvosa da dobradinha atmosférica sazonal ENOS (Oscilação Sul El Niño), que com seu par calorento, El Niño, castiga o Hemisfério, ora com chuvas ora com secas. O debate vai longe, mas poucos duvidam que num mundo mais quente, tormentas severas - "eventos hidrológicos" na linguagem do ofício - deverão ficar mais fortes e frequentes. O número de desastres relacionados a fenômenos climáticos saltou mais que 260% nas últimas três décadas, de 317 a 828 desde 1980, segundo a empresa internacional de resseguros, Munich Re. Nesse novo cenário, o extremo é o novo normal. E a América Latina está no olho desta tempestade. As chuvas no final do ano foram as piores já vistas pela Colômbia, onde morreram mais de 300, centenas de milhares perderam suas casas e os danos já passam de US$ 6,5 bilhões. Despotismo climático. Tão graves foram as últimas tempestades na Venezuela, que o governo do presidente Hugo Chávez conseguiu, sem maiores problemas, ganhar poderes excepcionais da Assembleia Nacional - talvez o primeiro caso de despotismo climático. E no Brasil, que já sepultou mais de 500 vítimas das chuvas, as temidas "supercélulas"ainda pairam. Ao todo, as Américas contabilizaram um em cada três desastres provocados pelo clima desvairado em 2010 e nos últimos 12 meses, quase 14 milhões de latino-americanos perderam terra e teto.Seja bem-vindo ao século da defesa civil, em que o novo divisor das águas da civilização contemporânea bem que poderia ser como os países lidam com as desgraças naturais. O flagelado ambiental é a parcela que mais cresce entre os miseráveis do planeta. A Cruz Vermelha Internacional calcula que já existe no mundo mais pessoas desterradas por tragédias climáticas do que os 19 milhões de refugiados de guerra e seus números podem chegar a 200 milhões até 2050.Para as Américas, a conta é especialmente cruel. Em quase todos os indicadores, os países da América Latina melhoraram ao longo das últimas décadas. A mortalidade infantil despencou. A maioria das economias está estável e o PIB da região deve crescer de 4% a 5% este ano. Foi-se o flagelo dos conflitos internos, da guerrilha e dívidas massacrantes. Nunca os governos latinos estiveram tão solventes e sólidos, com condições históricas para tocar a vida e a obra democrática. Mas ainda não sabem lidar com as crescentes emergências naturais. Chove todos os anos nas Américas sulinas, intensamente em épocas de La Niña, alternando com secas bíblicas - fenômenos climáticos perfeitamente previsíveis e mensuráveis, graças aos satélites e sofisticadas ferramentas de mapeamento de que os governos dispõem. Mas toda a proeza tecnológica nas nuvens parece evaporar na terra, onde sobram o caos, a correria e o improviso. Mazelas. Na hora do socorro há falta de tudo, de planos de contingência a dinheiro e, quando a verba existe, muitas vezes chega na ponta em conta-gotas. A mazela não é apenas latina. Mesmo após a ajuda farta de Washington depois do furacão Katrina, New Orleans se atolou em incompetência e desorganização.Claro, quanto mais miserável o país, mais castigado será quando a terra treme ou inunda. Mas o PIB não é destino. As maiores tragédias provocadas por desastres naturais nos últimos tempos ocorreram justamente nos países com os piores índices de corrupção e onde a democracia era mais frágil. Mais de 86 mil morreram no terremoto de 2005 do Paquistão (de 7,6 graus na escala Richter). Em 1985, um tremor de 8 graus no México deixou 9.500 mortos; 17 mil morreram em 1999 na Turquia pelo sismo de 7,6 graus; e 227 mil no tsunami da Indonésia em 2004. São todos países preteridos no ranking de boa governança e controle sobre a corrupção do relatório Governance Matters (Problemas de Governança) de 2009 (www.governmentindicators.org). A resposta aos dois terremotos que ocorreram no ano passado nas Américas - 316 mil mortos no Haiti (segundo novas estimativas), por um tremor de 7 graus, e 723 no Chile por um sismo de 8,8 graus - é a prova cristalina de que o poder de conviver com desgraças naturais está no chão e não apenas nos céus. É CORRESPONDENTE DA "NEWSWEEK", COLUNISTA DO "ESTADO" E EDITOR DO SITE WWW.BRAZILINFOCUS.COM

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