Sem se intimidar com perigos do Canal da Mancha, migrantes desesperados continuam planejando viagens

Rota traiçoeira, com fortes correntes e clima instável, se popularizou após autoridades bloquearem outros caminhos

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Por Constant Méheut e Norimitsu Onishi
Atualização:

CALAIS, França — Era possível avistar as luzes do outro lado do Canal da Mancha, o que encorajava Emanuel Malbah, um solicitante de asilo que vive há uma semana em um acampamento improvisado na costa do norte da França, a sonhar com a travessia.

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“Acho que não morro”, afirmou ele. “Acho que consigo chegar à Inglaterra.”

Apenas uma estreita faixa marítima separa Malbah, de 16 anos, e outros migrantes do objetivo de sua longa jornada através da Europa, após a fuga de suas casas no Oriente Médio e na África. Mas a proximidade entre as margens do canal pode enganar, como ficou evidente na última quarta-feira, quando pelo menos 27 pessoas morreram tentando atravessá-lo em um frágil bote inflável.

Apesar das mortes — esse desastre foi um dos incidentes mais mortíferos envolvendo migrantes na Europa nos anos recentes — Malbah e outras pessoas ainda aguardavam, na quinta-feira, o momento certo de sair correndo em direção à praia para arriscar a travessia.

Nos meses recentes, o número de migrantes enfrentando as águas do canal foi às alturas, porque as autoridades têm impedido outras rotas que levam à Inglaterra, especialmente aquelas que os levam ao destino escondidos em caminhões que cruzam o canal por seu túnel submarino.

“Este é o novo Mediterrâneo”, afirmou Malbah, que havia chegado a Calais, França, uma semana antes, invocando o cenário da crise migratória que a Europa testemunhou em 2015.

Malbah também empreendeu a traiçoeira travessia do Mediterrâneo, até a Itália, após deixar a Libéria, na África Ocidental, mais de um ano atrás. Na quinta-feira, ele se abrigava em uma zona de mata próxima à costa, juntamente com outras dezenas de solicitantes de asilo que buscavam proteger-se da chuva sob lonas azuis e tentavam se aquecer em torno de fogueiras.

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Motivados pela tragédia no mar que ocorreu no dia anterior, líderes franceses e britânicos prometeram reprimir as travessias de migrantes no canal que separa seus países, colocando a culpa em organizações criminosas de traficantes de pessoas, assim como uns nos outros.

As mortes são um preocupante lembrete de como as coisas quase não mudaram cinco anos depois de as autoridades francesas terem desmantelado um vasto acampamento de migrantes em Calais. Ambos os países ainda têm dificuldades para lidar com os migrantes na região, seguindo uma política que grupos de defesa de direitos de migrantes e especialistas em imigração afirmam que coloca os solicitantes de asilo em risco desnecessário.

Na quinta-feira, autoridades francesas confirmaram que crianças e uma mulher grávida estavam entre os migrantes que se afogaram, enquanto equipes de buscas enfrentavam frio e ventania para recuperar corpos e tentar identificar os mortos.

Migrantes são escoltados até a costa por um barco salva-vidas da RNLI, após terem cruzado o canal, em Dungeness, Reino Unido Foto: Henry Nicholis/REUTERS

Dois sobreviventes, do Iraque e da Somália, foram levados a um hospital francês, onde receberam tratamento para hipotermia grave.

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Gérald Darmanin, o ministro francês do Interior, afirmou que as autoridades acreditavam que aproximadamente 30 pessoas lotavam a embarcação, que ele comparou a “uma piscina inflável que as pessoas colocam no jardim”.

O presidente francês, Emmanuel Macron, e o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, conversaram por telefone na quarta-feira e afirmaram ter concordado em aumentar os esforços para evitar que migrantes arrisquem a travessia do canal, uma das mais movimentadas vias marítimas do mundo. O Reino Unido destina dinheiro atualmente para ajudar a França a cobrir os custos de impedir as travessias por meio de vigilância e patrulhamentos.

Apesar de os países acusarem um ao outro há muito tempo de fazer pouco para impedir as travessias, muitos especialistas em imigração e grupos de defesa de direitos afirmam que a responsabilidade recai sobre ambos: sua abordagem se resume a dificultar o máximo possível a situação dos solicitantes de asilo, para desencorajá-los a rumar para a Europa.

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“A França atua como uma agência terceirizada do Reino Unido, da mesma maneira que a Turquia em relação à Europa”, afirmou François Héran, especialista em migração da Collège de France, em Paris. “Por que a França permite que policiais britânicos a ajudem a impedir a imigração em seu território? Porque compartilhamos da mesma ideologia que considera indesejáveis os solicitantes de asilo.”

No início da crise migratória de 2015 na Europa, o Canal da Mancha era considerado uma barreira intransponível, porque suas fortes correntes e clima instável tornam qualquer tentativa de travessia perigosa demais.

Muitos tentaram se esconder em caminhões que atravessam o canal por seu túnel submarino. Mas agora a polícia patrulha regularmente as estradas que levam ao canal, e cercas de arame farpado com 3,5 metros de altura se estendem por quilômetros ao longo das rotas que levam ao Porto de Calais. Isso reduziu acentuadamente o número de migrantes que pegam carona nos caminhões de carga.

Pierre Roques, coordenador da Auberge des Migrants, uma organização sem fins lucrativos com base em Calais, afirmou que a costa norte da França “foi militarizada” ao longo dos anos recentes, acrescentando que “quanto maiores as barreiras de segurança, mais as redes de tráfico de pessoas se desenvolvem, porque os migrantes não conseguem mais atravessar por conta própria”.

Vários migrantes sudaneses que faziam fila em um centro de distribuição de alimentos nas imediações de Calais afirmaram que a polícia com frequência realiza operações nos acampamentos improvisados onde eles vivem, e os agentes por vezes os fustigam com cassetetes elétricos. Um relatório da Human Rights Watch publicado em outubro descreveu a tática de assediar os migrantes para fazê-los ir embora como “sofrimento forçado”.

Os migrantes jogam um jogo de gato e rato com as autoridades.

Malbah, o adolescente da Libéria, relatou que uma tentativa de travessia teve de ser abortada porque o motor do barco inflável não dava partida. A polícia francesa apareceu pouco depois e furou o barco, afirmou ele.

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Didier Leschi, diretor do Escritório Francês de Imigração e Integração, atribuiu a elevação na quantidade de travessias no canal — que chegam a 50 numa mesma noite, afirmou ele — a “um tipo de profissionalismo mafioso” dos traficantes de pessoas que encorajam os migrantes a enfrentar o mar, cobrando- de US$ 1,1 mil a US$ 2,8 mil.

Para monitorar a extensa costa marítima de onde partem os migrantes, afirmou ele, a França precisaria de “dezenas de milhares de policiais”.

Grupos de defesa de direitos de migrantes afirmaram que, exceto pela repressão, as autoridades têm feito pouco para lidar com a elevação no número de travessias marítimas.

Alain Ledaguenel, presidente de uma organização privada que realiza resgates no mar a partir de Dunquerque, cidade da qual os migrantes que morreram na quarta-feira provavelmente partiram, afirmou que, nos meses recentes, sua equipe tem realizado três vezes mais resgates marítimos do que realizava anteriormente.

“Temos soado nosso alarme há dois anos”, afirmou ele. “Desde setembro, ele não tem parado de soar."

Em um relatório contundente publicado no mês passado, a Assembleia Nacional afirmou que a política migratória do governo francês tem sido um fracasso e levou a uma série de violações aos direitos dos migrantes. Segundo o documento, de todo o dinheiro gasto por franceses e britânicos em 2020 para lidar com os migrantes presentes na costa francesa, cerca de 85% foi gasto em segurança e somente 15% em assistência de saúde e outros tipos de ajuda.

Isso prova que as autoridades estão voltadas para uma política de tornar as condições em Calais tão precárias quanto possível para os migrantes, para dissuadir os que quiserem segui-los de vir, afirmou Sonia Krimi, coautora do relatório e parlamentar do partido de Macron, La République en Marche.

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“Estamos fazendo isso há 30 anos, e isso não funciona”, afirmou Krimi. “Imigração existiu, existe e sempre existirá.”

Mas a natureza politicamente explosiva da imigração, especialmente a cinco meses das eleições presidenciais na França, dificulta a consideração de novas abordagens, afirmou Krimi. Seu relatório — que recomendou melhorias nas condições de abrigo e trabalho dos migrantes, assim como simplificação no procedimento de concessão de asilo — foi criticado até por membros de seu próprio partido.

Em Calais, os migrantes com esperança de um dia conseguir chegar ao Reino Unido têm sido tomados cada vez mais pelo desespero.

Sassd Amian, de 25 anos, um migrante do Sudão do Sul, afirmou que esperava conseguir atravessar o Eurotúnel escondido em algum caminhão.

Estudante de arquitetura, Amian afirmou que seu sonho “é chegar à Inglaterra”, que ele descreveu como “um país forte, com boa educação, e onde a língua inglesa é falada”.

Amian afirmou que fugiu do conflito no Sudão do Sul quatro anos atrás e encarou a travessia do Mediterrâneo à Itália, passando fome e sede, depois de escalas no Egito e na Líbia.

Quando os caminhões passam por uma rotatória no caminho para o Eurotúnel, há uma brecha — de poucos segundos — em que é possível para uma pessoa tentar se enfiar entre os eixos do veículo e encontrar um esconderijo, afirmou Amian. Muitos já perderam as pernas e alguns morreram tentando a façanha, afirmam os migrantes.

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Mas como tem sido bem-sucedido em seu caminho até agora, Amian disse não ter medo.

“A morte”, afirmou ele, “não é nenhuma novidade nessa vida”./ TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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