Senado americano decide que é constitucional julgar impeachment de Trump

Processo testa os limites da Constituição após o ataque ao Capitólio no mês passado por uma multidão de extremistas pró-Trump que deixou cinco mortos 

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Por Beatriz Bulla e Correspondente
Atualização:

WASHINGTON - Por 56 a 44, o Senado dos  Estados Unidos decidiu que é constitucional julgar o segundo impeachment de Donald Trump. Seis republicanos votaram com democratas pela constitucionalidade do julgamento. Na primeira sessão sobre o caso, nesta terça-feira, 9, os senadores permitiram a continuidade do processo contra um ex-presidente já fora do cargo, algo sem precedentes na história americana. Os advogados do republicano argumentavam que o processo era inconstitucional, por ele já ter encerrado o mandato.

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Com isso, Trump é o primeiro presidente a sofrer impeachment no Senado mesmo depois de deixar a Casa Branca e também o primeiro a enfrentar esse processo duas vezes. O início do julgamento no Senado aconteceu um ano após os senadores livrarem Trump do seu primeiro impeachment, em fevereiro de 2020.

Desta vez, o ex-presidente é acusado de incitar a multidão que atacou o Capitólio no dia 6 de janeiro para tentar impedir a sessão que certificou a vitória de Joe Biden na eleição de 2020. Ao menos cinco pessoas foram mortas na invasão ao prédio que é símbolo das instituições americanas. Outras ficaram feridas. 

O senador Jamie Raskin (democrata) discursa durante abertura do segundo processo de impeachment do ex-presidente Donald Trump Foto: U.S Senate TV/Handout via Reuters

O voto pela constitucionalidade do impeachment já era esperado, pois depende de maioria simples para aprovação. O Senado americano está dividido atualmente, com 50 senadores de cada partido. Se fosse necessário, o voto de minerva seria da vice-presidente dos EUA, que acumula a presidência do Senado, a democrata Kamala Harris.

Acusação e defesa devem passar o restante da semana com apresentação de argumentos aos senadores. No sábado, a pedido da defesa de Trump, o julgamento será suspenso, podendo ser retomado no domingo. A expectativa de parlamentares é encerrar a votação no início da próxima semana.

Se os senadores condenarem Trump, poderão então votar pela desqualificação do presidente para concorrer a qualquer cargo federal. Se condenado e impedido de concorrer, ele não poderá disputar a presidência em 2024.

Não há disposição política, no entanto, entre os republicanos para condenar Trump, devido à influência que o ex-presidente ainda exerce sobre a base eleitoral do partido. É preciso de maioria qualificada para condenar o ex-presidente. Isso significa que ao menos 17 dos 50 senadores republicanos precisam votar contra Trump para condená-lo, o que é improvável.

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Vídeo

Deputados democratas responsáveis pela acusação, chamados de gerentes do impeachment, usaram as cenas da invasão do Capitólio, transmitidas em um vídeo com imagens fortes, para confrontar republicanos com as lembranças do dia do ataque. Relembrar os senadores do que viveram há um mês é perturbador para os parlamentares, que são ao mesmo tempo juízes e vítimas da situação.

"Senadores, esse não pode ser nosso futuro. Não podemos ter presidentes incitando violência porque não pode aceitar o resultado da eleição", afirmou Jamie Raskin, o líder do grupo de deputados responsáveis pela acusação. "Eles poderiam ter matado todos nós", disse o deputado David Cicilline, outro gerente da acusação de impeachment. O ataque colocou em risco os parlamentares e o então vice-presidente dos EUA, Mike Pence, que presidia a sessão de confirmação da eleição de Biden.

Deputados democratas Eric Swalwell (E) e Joaquin Castro assistem ao primeiro dia do julgamento de impeachment de Trump no Senado Foto: Erin Schaff/The New York Times

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O vídeo exibido intercalou cenas de violência do dia 6 de janeiro com trechos do discurso de Trump, no mesmo dia. No pronunciamento, Trump encorajou os manifestantes a marchar ao Capitólio, onde o Congresso certificava a vitória de Joe Biden na eleição de 2020, e pede que seus apoiadores "lutem como o inferno" para "devolver o orgulho do país".

O vídeo elaborado pelos democratas mostra o momento em que extremistas derrubaram cercas que protegem o capitólio, enfrentaram policiais, quebraram janelas do prédio do congresso americano e invadiram a instituição repetindo frases de Trump, como "parem a fraude". Os manifestantes também gritavam "lutem por Trump" e "Pence é traidor". As imagens mostraram deputados presos dentro do plenário enquanto uma multidão corria pelos corredores do Congresso batendo em portas e janelas, em confronto com policiais. 

Membros da Guarad Nacional vigiam capitólio durante primeiro dia do julgamento de impeachment de Trump Foto: Michael Reynolds/EFE/EPA

"Se essa não é uma ofensa passível de impeachment, então nada mais é", disse Raskin. O deputado argumentou que a intenção da constituição é garantir a responsabilização dos presidentes. A ideia dos democratas é esvaziar o argumento de republicanosde que a função original do processo de impeachment previsto na Constituição é remover o presidente e, com Trump fora do cargo, o julgamento perderia a razão de existir.

Perdoar Trump, disseram os deputados, significaria permitir que um presidente traia o país, deixe o cargo e fique sem punição em um vácuo de responsabilização na reta final do mandato que os democratas classificaram como "exceção de janeiro". "A história não apoia uma exceção de janeiro, de forma alguma. Então por que vamos inventar uma para o futuro?" disse Raskin.

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"É indiscutível que o presidente cometeu esse crime enquanto era presidente e que nós abrimos o processo de impeachment enquanto ele era presidente. Não há dúvida que esse é um processo de impeachment válido e não há dúvida que o senado tem o poder de prosseguir com esse impeachment", disse Raskin.

A Câmara autorizou a abertura do impeachment contra Trump uma semana após a invasão, em 13 de janeiro. O Senado decidiu fazer o julgamento do ex-presidente só depois da posse de Joe Biden, que aconteceu no dia 20 de janeiro."A constituição dá ao Senado o poder de julgar todos os impeachments. 'Todos' significa 'todos' e não há exceção à regra", disse o deputado, que citou juristas conhecidos por posições conservadoras em um apelo aos republicanos, para alegar que o entendimento jurídico é de que o processo de impeachment pode acontecer contra um presidente que já deixou o cargo.

Sob um silêncio solene, os nove 'promotores' cruzaram para chegar ao Senado os mesmos corredores decorados por estátuas e telas invadidos por apoiadores de Trump no ataque ao Capitólio em 6 de janeiro Foto: Tasos Katopodis/Getty Images/AFP

A defesa de Trump argumentou que o discurso de Trump no dia 6 de janeiro é parte de uma linguagem política e é preciso proteger a liberdade de expressão do presidente, que, segundo eles, não incitou a violência. Os defensores de Trump também afirmaram que o impeachment tem motivação político-partidária -- um argumento recorrente do ex-presidente ao longo do seu governo. Trump sempre se disse perseguido pelos democratas e elites políticas. Segundo os advogados, 

“O pêndulo político mudará um dia”, disse Bruce Castor Jr., advogado que liderou a defesa de Trump. “Esta Casa e a câmara do outro lado mudarão um dia e os impeachments partidários se tornarão comuns”, disse o advogado. A defesa de Trump condenou a violência, mas disse que o presidente não é responsável pelo ataque. Assim como já tinham feito no dia anterior em uma defesa prévia apresentada aos senadores, os advogados de Trump sustentaram que a Constituição não permite o julgamento de um ex-presidente porque o impeachment foi pensado para remover o presidente.

Emoção

Com voz embargada e interrompido por momentos de choro, o deputado democrata Jamie Raskin encerrou a argumentação da acusação com sua história pessoal. Raskin havia enterrado um de seus filhos no dia anterior à invasão do Capitólio. Ainda de luto pela morte do filho, disse, ele temeu pela vida da filha, que o acompanhava no Capitólio em 6 de janeiro. A ideia era a família se manter unida em um momento de dor.

Com a notícia sobre os protestos marcados para a data, a filha do parlamentar perguntou se seria seguro acompanhar o pai. "Claro que será seguro, é o Capitólio", disse Raskin aos senadores, ao relembrar sua resposta. O democrata rememorou as cenas daquela tarde, dizendo ter visto colegas deputados retirarem o broche de congressistas para evitarem o reconhecimento pelos extremistas. "Ao meu redor as pessoas faziam ligações achando que aquelas seriam suas últimas palavras", disse. "Ouvi o som mais ameaçador da minha vida", afirmou. 

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Em seu gabinete, segundo ele, filha e genro acharam que iriam ser mortos. "Quando eles foram resgatados, pedi desculpas e disse à minha filha que a próxima vez que ela viesse ao Capitólio não seria assim. Sabem o que ela me falou? 'Pai, eu não quero voltar mais ao Capitólio'", afirmou Raskin, em prantos.O parlamentar também descreveu os ferimentos sofridos por policiais que tentaram proteger o prédio. "Dedos perdidos, injúrias cerebrais", disse o deputado. "Ver alguém usar o mastro com uma bandeira americana para bater e torturar um de nossos policiais", disse o deputado. 

Os acessos ao Capitólio estão bloqueados e protegidos por homens da Guarda Nacional ostensivamente armados, desde o dia 6 de janeiro. Não é possível chegar nas proximidades do prédio sem identificação de funcionário, parlamentar ou imprensa. Os sinais da invasão ainda são visíveis em janelas quebradas e outras protegidas por tapumes.

Joe Biden tentou se manter distante da votação. Questionado na Casa Branca, disse que não assistiu ao julgamento do ex-presidente Trump pois tem "um trabalho a fazer". "Tenho certeza que eles (senadores) vão se comportar bem e isso é tudo o que tenho a dizer sobre o impeachment", afirmou o presidente.

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