Silenciando críticas

Erdogan justifica expurgos dizendo que enfrenta 'conspiradores terroristas'

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Por Lourival Sant'Anna
Atualização:

A tentativa de golpe militar do dia 15 e a violenta repressão que se seguiu na Turquia são consequências da estratégia de permanência no poder do presidente Recep Tayyip Erdogan. A Turquia se consolida ao lado da Venezuela e da Rússia de hoje, e da Alemanha e da Itália dos anos 30, como laboratório de um desconcertante experimento: a incursão no autoritarismo pela via democrática.

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Embalado pelo crescimento da economia e pelo conservadorismo religioso de parte da população turca, o Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP) venceu cinco eleições parlamentares entre 2002 e 2015. Erdogan e seu AKP representaram uma quebra de paradigma na política da Turquia moderna, em que só havia antes espaço para nacionalistas de direita e de esquerda e liberais.

Fundado por Kemal Ataturk e outros oficiais sobre os escombros do Império Otomano depois da 1.ª Guerra, o Estado turco moderno tinha como fundamento a separação mesquita-Estado, com os militares como guardiões do secularismo. Assim como outros movimentos islâmicos, o Partido do Bem-Estar, pelo qual Erdogan se elegeu prefeito de Istambul em 1994, foi banido, em 1998, por “incitação à intolerância religiosa”. Erdogan foi condenado a 10 meses de prisão e tornado inelegível. O grupo criou um partido mais moderado, o AKP, que, ao chegar ao governo, em 2003, indultou Erdogan e promoveu uma votação em um distrito para que ele pudesse se eleger deputado e tornar-se premiê.

Veio a Primavera Árabe, em 2011, e Erdogan rompeu com os ditadores e passou a se promover como o campeão da liberdade no mundo muçulmano, apoiando grupos extremistas na Síria. Passou a construir suntuosos palácios e mesquitas, ao estilo otomano, e a dirigir-se, em seus pronunciamentos à nação, não mais ao povo turco, mas à Umma, a comunidade muçulmana mundial. Confiante, Erdogan começou a mudar as leis, restringindo o consumo de bebidas alcoólicas e permitindo o uso do véu em repartições públicas. Foi aí que ele começou a enfrentar resistências mais visíveis.

As manifestações de 2013 na Praça Taksim, em Istambul, foram desencadeadas pelo projeto de construção de um shopping que recriava um antigo quartel otomano, mas evoluíram rapidamente para protestos contra o crescente autoritarismo de Erdogan. Os protestos acabaram duramente reprimidos. Em dezembro do mesmo ano, eclodiu um escândalo de corrupção, no qual Erdogan foi acusado de desviar bilhões de dólares em um esquema de triangulação da venda do petróleo iraniano, que estava sob embargo americano e europeu. Erdogan mudou a lei, para submeter a nomeação de juízes e promotores ao Ministério da Justiça, e obteve a prisão dos magistrados que o investigavam. Grampos telefônicos publicados no Twitter em fevereiro comprometiam o primeiro-ministro e seu círculo. Em um deles, Erdogan instruía seu filho a esconder o dinheiro guardado em casa, ao saber de um mandado de busca e apreensão, em dezembro. O primeiro-ministro, então, baniu o Twitter na Turquia e passou a acusar de conspiração o movimento Hizmet (“Serviço”), inspirado na corrente sufi do Islã, que prega o diálogo entre as religiões e as culturas.

Erdogan sabia que não sobreviveria sem apoio das Forças Armadas. A Turquia sofreu quatro golpes desde 1960. Como parte de uma distensão entre o governo e as Forças Armadas, foram absolvidos 236 militares suspeitos de envolvimento em uma suposta tentativa de golpe contra ele em 2003, no que ficara conhecido como Operação Marreta. A Justiça reconheceu que as provas do complô tinham sido forjadas. Erdogan realizou expurgos e garantiu apoio na cúpula das Forças Armadas.

Pelas regras internas de seu partido, Erdogan não podia concorrer ao cargo de deputado pela quarta vez e, por isso, lançou-se a presidente em 2014. Sua prioridade passou a ser deslocar os poderes do primeiro-ministro para o presidente. Nas eleições de junho do ano passado, porém, com 41% dos votos, o AKP não obteve a maioria para formar governo. O partido curdo HDP, que conquistou 80 cadeiras, recusou-se a apoiar o presidencialismo. Erdogan, então, pôs fim às negociações de paz com a guerrilha curda e retomou o conflito com os separatistas, que usou para unir o país em um fervor nacionalista em seu apoio. Os atentados do Estado Islâmico, lançados em junho de 2015, depois que ele permitiu o uso da base de Incirlik pela Otan para bombardear alvos do grupo, reforçaram essa união nacional em torno do governo. Erdogan convocou novas eleições para novembro e, dessa vez, o AKP obteve 50% dos votos e a maioria absoluta.

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No dia 15, militares de patentes mais baixas, descontentes com a retomada do conflito curdo e com a tutela ao governo islâmico, tentaram um golpe. Erdogan impôs um estado de emergência. Até sexta-feira, mais de 18 mil pessoas haviam sido presas, 66 mil funcionários públicos demitidos – entre eles, 2.745 juízes – e 142 veículos de comunicação, fechados. Erdogan tenta justificar essa repressão com o argumento de que está enfrentando “conspiradores terroristas” do Hizmet. Mas nem o Hizmet tem relação com terrorismo nem as perseguições se limitam ao movimento. O que Erdogan está fazendo é simplesmente silenciar toda crítica contra ele.

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