Sistema em ruptura: populismo, antielitismo e nacionalismo; leia artigo 

Um relatório recente da Ipsos Global Advisor pinta um quadro crítico para a América Latina onde a pontuação média das percepções dos cidadãos sobre o estado da democracia é significativamente pior do que a média global 

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Por Daniel Zovatto  
Atualização:

Um relatório recente da Ipsos Global Advisor pinta um quadro mundial preocupante, crítico para a América Latina. As principais conclusões mostram um crescente sentimento entre os cidadãos de que o sistema está em ruptura, que a principal divisão em nossas sociedades é entre os cidadãos comuns e a elite política e econômica, que a economia é manipulada em favor dos ricos e poderosos, que os partidos tradicionais e os políticos não se importam com as pessoas comuns, que os migrantes põem em perigo a identidade nacional. 

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Mais de 19 mil pessoas foram entrevistadas em 25 países do mundo, incluindo as 6 maiores economias de nossa região: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México e Peru. As notícias que emergem do estudo não são boas, pois a pontuação média das percepções dos cidadãos latino-americanos sobre o estado da democracia é significativamente pior do que a média global. 

Três atitudes principais emergem do estudo: populismo, sentimento antielite e nacionalismo; sentimentos que, embora já presentes na América Latina antes da pandemia, foram reforçados pelo desastre socioeconômico desencadeado pela covid-19 e representam uma combinação tóxica que corrói a legitimidade da democracia, deteriora sua qualidade e a enfraquece diante de seus inimigos. Um primeiro ponto a ser observado nesta pesquisa é a prevalência de um alto pessimismo. Quatro dos cinco países com a maioria daqueles que consideram que “o país está em declínio” são latino-americanos: Brasil, 69%; Chile, 68%; Argentina, 68%; e Colômbia, 67%. 

Manifestaçãocontra o governo em El Salvador Foto: Marvin Recinos/AFP

A sensação de que a sociedade está fraturada também é maior na América Latina (64%) do que globalmente (56%). Os quatro países onde os cidadãos percebem que o sistema está mais fraturado e mais distante de suas realidades e necessidades também são latino-americanos: Colômbia, Peru, Brasil e Chile. 

O estudo também revela a má imagem dos políticos e sua desconexão com os cidadãos: 81% pensam que os políticos acabam sempre encontrando uma maneira de proteger seus interesses e 72% estão convencidos de que a elite política e econômica não se importa com as pessoas que trabalham. A rejeição de partidos e políticos tradicionais na região também excede a média global de 68%, chegando a um alarmante 85%, na Colômbia, e 84%, no Chile. E 60% dos entrevistados pensam que as questões políticas mais importantes devem ser decididas diretamente pelo povo através de referendos e não por autoridades eleitas. 

Outro aspecto notável é a demanda por líderes fortes que estejam dispostos a quebrar as regras (44%) e “tirar o país dos fortes e poderosos” (64%). Esta última constatação é particularmente grave por duas razões. Primeiro, a experiência da América Latina com as várias ondas populistas dos séculos 20 e 21 não tem sido positiva. E, segundo, as recentes eleições peruanas, onde as duas opções mais radicais – esquerda e direita – alcançaram o segundo turno, suscitam o alarme de que as próximas eleições poderiam abrir as portas para uma nova onda de governos populistas e/ou autoritários. 

Um terceiro sentimento negativo é o aumento do nacionalismo e da xenofobia entre as populações e os líderes. Colômbia e Peru lideram a região no nacionalismo e na rejeição da imigração. Os cidadãos pesquisados acreditam que seus países seriam mais fortes se a imigração fosse interrompida e, quando se trata de empregos, deveria ser dada prioridade à contratação de nacionais.  O relatório Ipsos é um alerta sobre o perigoso aumento desses três fenômenos negativos – populismo, antielitismo e nacionalismo – que, se não forem abordados de forma adequada e oportuna, poderão levar a níveis mais elevados de polarização e instabilidade e complicar a governança. 

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A deterioração dos indicadores socioeconômicos nos últimos anos e a erosão dos princípios democráticos já impregnaram os cidadãos que, desconfiados dos partidos tradicionais e fartos da desigualdade, corrupção, violência e falta de oportunidades, exigem que seus governos ofereçam soluções rápidas para suas demandas. A incapacidade de responder de forma oportuna e eficaz a essas demandas pressagia uma nova onda de protestos sociais.

Em resumo, os resultados desta pesquisa mostram que os sentimentos populistas, antiestabelecimento e xenófobos transcendem as ideologias e apresentam níveis cada vez mais altos e preocupantes de aceitação social. Eles também sugerem a necessidade urgente de recuperar a confiança dos cidadãos na política e em suas instituições; de avançar em direção a uma nova geração de democracia que escute e produza resultados; e de construir uma cidadania e uma liderança firmemente comprometida com os valores democráticos, o pluralismo e a tolerância.*ADVOGADO ARGENTINO E DIRETOR REGIONAL DA IDEA INTERNACIONAL

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