Sob pressão de relatório da ONU, Venezuela solta 22 presos

Além de 20 estudantes, foram liberados um jornalista detido desde 2016 e uma juíza presa em 2009; delegação da Venezuela no Conselho de Direitos Humanos critica investigação conduzida por Michelle Bachelet e a acusa de ser parcial

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Por Redação
Atualização:

CARACAS - A Venezuela libertou 22 pessoas na quinta-feira à noite, incluindo os emblemáticos casos da juíza María Lourdes Afiuni e do jornalista Braulio Jatar, informou nesta sexta-feira, 5, a alta-comissária para Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet. Somente os nomes de Afiuni e Jatar foram divulgados pela comissária. As outras 20 pessoas são estudantes que estavam sob custódia de Caracas, por motivos não divulgados.

Juíza venezuelana María Lourdes Afiuni acena para apoiadores na frente de sua casa, em Caracas; ela foi solta depois de 10 anos detida Foto: REUTERS/Carlos Garcia Rawlins

O ato foi comemorado pela oposição. Em sua conta no Twitter, o presidente da Assembleia Nacional e autodeclarado presidente, Juan Guaidó, escreveu que a libertação dos presos políticos é um “produto do contundente relatório da alta-comissária Michelle Bachelet e da condenação recebida na ONU”.

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A libertação dos presos ocorreu no mesmo dia em que Bachelet divulgou o relatório completo, feito após visita de três dias à Venezuela, no mês passado. O documento apresenta denúncias de repressões do regime de Nicolás Maduro colhidas em 558 entrevistas com residentes e exilados políticos.

Bachelet foi a primeira comissária de direitos humanos a visitar a Venezuela. Mesmo sob a tutela de Maduro, ela teve encontros com membros da oposição, entre eles o próprio Guaidó, além de parentes das vítimas do governo chavista. Na ocasião, ela havia prometido a Guaidó que insistiria na libertação dos presos políticos do país. Essa foi uma condição para aceitar fazer a viagem.

Para a deputada opositora exilada na Espanha, Dinorah Figueroa, a libertação “evidencia o que a oposição tem denunciado, assim como os órgãos internacionais de direitos humanos”. Ela reitera que “não há forma de mudanças definitivas dentro da ditadura”.

Em sua conta no Twitter, Braulio Jatar, que estava em prisão domiciliar, escreveu que somente foi informado verbalmente de que ainda precisa se apresentar a um juiz a cada 15 dias, sem poder sair do país e do Estado onde mora. “Ao se concretizar o anunciado, esta libertação será uma liberdade limitada e condicionada a um processo injusto e ilegal”, disse. Mais detalhes foram prometidos somente para segunda-feira, já que ontem foi o feriado em celebração à independência.

Jatar, que também possui a cidadania chilena, foi preso em setembro de 2016 na Ilha de Margarita um dia depois de um protesto contra Maduro. O episódio agravou as relações diplomáticas entre Santiago e Caracas.

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Maduro teria visitado o bairro popular de Villarosa, mas acabou cercado por manifestantes contrários a seu governo e teve de deixar o local. O jornal eletrônico de Jatar, chamado Reporte Confidencial (Relatório Confidencial, em tradução livre), teria sido um dos primeiros veículos de imprensa a divulgar um vídeo do episódio.

O cientista político Ricardo Sucre Heredia avalia que a decisão de libertar os presos não teria sido tomada pelo governo Maduro antes da visita de Bachelet. “Eles chegaram a uma série de acordos que vamos conhecer à medida que se tornarem públicos. Um deles é essa libertação.” Heredia nega que se trate apenas de uma propaganda por parte de Maduro. “Em quase todos os casos não há libertações totais. Sempre são condicionadas, pois o próprio governo teme que muitas pessoas reincidam. Mas Maduro quer mostrar que está cumprindo com o acordo.”

Inicialmente, a visita de Bachelet à Venezuela não foi vista como positiva pela oposição venezuelana, por recolocar Maduro no papel de negociador. Ex-presidente do Chile, Bachelet comandou o país durante dois mandatos pelo Partido Socialista do Chile, construindo laços com diversos líderes da esquerda latino-americana na época. Dirigentes venezuelanos da Assembleia Nacional, formada pela oposição, apostavam em um posicionamento favorável ao governo.

“Para nós, Bachelet tem relação com líderes da esquerda latina. Tinha toda uma expectativa da opinião pública em torno disso”, disse Figueroa ao Estado. Heredia afirma que o principal motivo para isso é a polarização política que domina o país. “Qualquer coisa relacionada à esquerda está sujeita a isso.”

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Apesar das desconfianças da oposição, o relatório de Bachelet apontou que a Força de Ação Especial da Polícia Nacional Bolivariana (Faes), criada por Maduro, para “combater o crime e o terrorismo”, foi responsável pela morte de mais de 5,7 mil pessoas no ano passado e de outras 1,5 mil neste ano. Em média, segundo a ONU, o Faes matou ao menos 14 pessoas por dia em 2018.

Governo acusado

O relatório do órgão da ONU também detalha prisões sem precedentes e torturas, “incluindo choques elétricos, sufocamento com sacos plásticos, afogamentos, agressão física e sexual, racionamento de água e comida, estresse e exposição a temperaturas extremas”.

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“As forças (de ação especial) criadas pelo governo não têm a intenção de conter a violência, mas sim perseguir opositores. E não se torna uma responsabilidade do Estado, porque o próprio militar que comete um crime é quem será julgado. Essa é a situação atual dos direitos humanos na Venezuela”, critica Luis Cedeño, diretor da ONG venezuelana Paz Ativa.

Relatório parcial

A delegação da Venezuela no Conselho de Direitos Humanos criticou nesta sexta-feira o relatório apresentado por Bachelet sobre a situação no país, que considerou "parcial e cheio de graves erros metodológicos".

"O documento é dominado por uma visão seletiva e parcial, carente de rigor científico e com graves erros metodológicos", ressaltou o vice-ministro venezuelano de Relações Exteriores, William Castillo, na sua réplica ao relatório apresentado pelo alto Escritório das Nações Unidas de Direitos Humanos, comandado por Bachelet.

Vice-chanceler venezuelano, William Castillo, chamou o relatório da Alta Comissária da ONU para Direitos Humanos, Michelle Bachelet, de 'parcial e cheio de erros' Foto: EFE/EPA/MARTIAL TREZZINI

"A senhora sabe que o relatório não reflete a realidade do que viu no nosso país", acrescentou o diplomata em referência à viagem da ex-presidente chilena ao país.

Castillo argumentou suas críticas no fato de que das 558 entrevistas realizadas para a elaboração do seu relatório, 460 aconteceram fora da Venezuela (segundo Bachelet explicou previamente, com migrantes e refugiados venezuelanos atualmente em Brasil, Argentina, Chile, Colômbia, Equador, México, Peru e Espanha).

"Além disso, o documento ignora os graves impactos que o ilegal, criminoso e imoral bloqueio econômico está exercendo sobre a vida do nosso povo", acrescentou o vice-ministro, exigindo uma "correção de seu conteúdo".

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O relatório - cuja publicação coincide com a comemoração do Dia Nacional da Venezuela, como lembrou Castillo - pede ao Governo do presidente venezuelano, Nicolás Maduro, para acabar com "o grave ataque aos direitos" no país.

Entre outras coisas, o documento denuncia que, especialmente desde 2016, o regime de Maduro e suas instituições iniciaram uma estratégia "orientada a neutralizar, reprimir e criminalizar a oposição política e quem criticasse o Governo" com detenções arbitrárias, maus-tratos e torturas.

"O que se quer é que o Estado fique desarmado quando existem sérios riscos à segurança nacional, planos de golpe de Estado que propõem um banho de sangue entre a população civil e até uma intervenção militar estrangeira com a qual nos ameaça o presidente (americano) Donald Trump", defendeu. / CARLA BRIDI, COM REUTERS e EFE

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