Soldados foram torturados por oficiais

Entre as lembranças dos veteranos de guerra estão a fome, as humilhações, os castigos físicos e o antissemitismo impostos por superiores

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Por Ariel Palacios - O Estado de S. Paulo - correspondente/Buenos Aires
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BUENOS AIRES - “No amanhecer do 2 de abril de 1982 fomos informados no quartel de minha cidade, Mercedes, que a Argentina havia recuperado as Malvinas. Poucas semanas depois, eu e todo o Regimento de Infantaria Número 12 estávamos instalados em Darwin, a 70 quilômetros de Puerto Argentino”, diz Oscar Núñez ao Estado, lembrando como foi a transferência de sua província, Corrientes, para 3,2 mil quilômetros ao sul, nas Ilhas Malvinas. Veja também:especialCRONOLOGIA: A história do arquipélagolista PERFIL: Os protagonistas do conflito documento ARQUIVO: As capas do ‘Estado’ sobre a guerratabela ESPECIAL:  30 anos da Guerra das Malvinas

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“Uma coisa é estar em um campo de batalha e aguentar fome e frio. Outra coisa é os oficiais nos impedirem de alimentar”, explica. “Decidimos buscar alimento, pois um soldado já havia morrido de fome”, diz, com tristeza. “Se não conseguíssemos comida, teríamos o mesmo destino dele. Os oficiais, ao contrário da gente, sempre tinham comida.”“Em 24 de maio, eu e dois colegas havíamos matado uma ovelha para comê-la. Por isso, o subtenente Gustavo Malacalza ordenou que fôssemos ‘estacados’ (amarrados com estacas no chão, com os braços e pernas abertos). Era uma loucura. Ficamos oito horas em cima da terra congelada.” Núñez e os companheiros foram soltos pelo sargento Guillermo Inzaurralde, que os desamarrou quando a noite caiu. “Não conseguia caminhar, minhas articulações estavam congeladas.”Núñez afirma que, quando estava nas Malvinas, acreditava que as torturas tinham sido aplicadas somente a seu grupo. “Depois da guerra ficamos sabendo que isso havia sido costumeiro. A coisa que dói é que a gente não espera uma punhalada de um compatriota.”Cinco dias depois de ter sido estaqueado, Núñez estava em plena batalha de Goose Green, no istmo de Darwin. Foi a segunda batalha terrestre nas ilhas. “Malacalza foi embora na hora em que os combates começaram. Ficamos ali sozinhos, enfrentando os britânicos”, conta. “Estive em combate corpo a corpo. Meu regimento foi o segundo em número de baixas, um total de 35 mortos”.Trinta anos depois da guerra, Núñez tem esperança de que as Malvinas “voltarão para a Argentina”. “O mundo está mudando. Portanto, alguma hora os britânicos sairão dali. Malvinas será como Hong Kong. Um dia voltará a seus donos verdadeiros.”

Vinte e cinco anos depois da guerra, Núñez abriu um processo na Justiça contra seu antigo superior. “Avancei na primeira instância. Depois, disseram que o caso havia caducado”, lamenta. O processo, atualmente, está sendo analisado na Corte Suprema de Justiça, que avalia a possibilidade de enquadrar os casos de tortura de recrutas como crimes contra a humanidade. Dessa forma, não prescreveriam.

Antissemitismo. O veterano de guerra Silvio Katz, que já havia sofrido torturas dos oficiais argentinos durante o serviço militar no continente por ser judeu, viveu um inferno durante a Guerra das Malvinas. As Forças Armadas argentinas eram famosas por seu antissemitismo.

O caso de Katz é um dos principais do recém-lançado livro Rabinos nas Malvinas, investigação feita pelo jornalista Hernán Dobry sobre as torturas que os oficiais argentinos aplicaram contra soldados judeus compatriotas durante a guerra. 

Dobry afirmou ao Estado que diversos assuntos relativos ao conflito de 1982 “são empurrados para debaixo do tapete. Os combatentes argentinos que eram judeus foram alvo de uma sanha intensa por parte dos oficiais e suboficiais, que os submetiam a castigos humilhantes”.

“Aos gritos, os oficiais nos acusavam de ter assassinado Cristo. Nos escolhiam sempre para limpar as latrinas. Ser judeu era um fator para que os castigos fossem duplos. Os oficiais diziam que meu nome e sobrenome era ‘Judeu de M.’ ”, lembra.

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Sem alimentos nas trincheiras, Katz e o soldado Carlos Mialfi fizeram uma vaquinha com a tropa e foram a uma venda em um vilarejo comprar comida. De volta às barracas, os oficiais confiscaram os alimentos. O subtenente Eduardo Ardoino ordenou que Katz e Mialfi fossem estaqueados sobre a terra congelada, só de cuecas. “Os militares colocaram na boca de Mialfi uma granada sem pino. Se abrisse a boca, eu e ele explodiríamos”, diz.

“Não sei quanto tempo estive ali, não sei se foram horas ou minutos. Para mim, era uma eternidade”, lembra Katz. “Depois, nos desamarraram e disseram que nos dariam comida. Pegaram os alimentos que havíamos comprado e com os quais eles haviam feito um ensopado de grão-de-bico. Ardoino jogou a comida dentro da latrina e me obrigou a comer. Seu revólver estava engatilhado contra minha cabeça.”

No dia 14 de junho, os britânicos rodeavam Puerto Argentino. “Começamos uma retirada enquanto nos defendíamos. Depois da rendição, os britânicos curaram meus ferimentos e me alimentaram. Havia desembarcado nas ilhas com mais de 75 quilos e estava com menos de 45. Minha mãe não me reconheceu quando foi me ver no hospital militar.” Há poucos anos – depois de um longo período de terapia – Katz venceu seus temores e decidiu abrir na Justiça um processo por tortura contra Ardoino. 

Além dos abusos sofridos durante a campanha militar, os cadetes argentinos nunca viram os milhares de pulôveres e cachecóis tricotados e enviados por aposentadas, os chocolates doados por estudantes de escolas primárias, muito menos os milhões de dólares em joias e anéis de ouro entregues pela população, que abasteceram o Fundo Patriótico criado pelo governo militar durante a Guerra das Malvinas. Apesar das doações, os soldados continuaram passando fome e frio nas trincheiras improvisadas no arquipélago do Atlântico Sul.

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Roubo. No total, de acordo com documentos revelados pelo economista Manuel Solanet, na época encarregado das finanças da guerra, o governo militar obteve US$ 54 milhões em doações. Em 15 de junho de 1982, um dia depois da rendição argentina, o dinheiro arrecadado foi removido do Fundo Patriótico e enviado às contas bancárias das Forças Armadas e ao governo militar das Malvinas, que na prática não existia mais.

As joias e os anéis fundidos foram enviados à Casa da Moeda no próprio dia da rendição e rapidamente foram transformados em 73 lingotes de ouro, pesando 141 quilos. Somente um doador, o empresário Renato Vaschetti, conseguiu reaver os três quilos de ouro que havia entregue. Ele recorreu à Justiça alegando que o ouro doado havia tido um “destino incerto”.

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