08 de fevereiro de 2015 | 02h03
Mas o ritual da imolação se mantém no mundo e agora é coletivo: praticam-no os países que, presas de um desvario passageiro ou prolongado, decidem empobrecer-se, barbarizar-se, corromper-se, ou todas essas coisas juntas.
A América Latina é pródiga em exemplos trágicos. O mais notável é o da Argentina, que há três quartos de século era um país do Primeiro Mundo, próspero, culto, aberto, com um sistema educacional modelar e, de repente, presa da febre peronista, decidiu retroceder e arruinar-se.
O país se submeteu a uma prolongada agonia que, amparada por sucessivos golpes militares e uma heroica perseverança no erro de seus eleitores, persiste até hoje. Esperemos que algum dia os deuses ou o acaso devolvam a sensatez e a lucidez à terra de Sarmiento e de Borges.
Outro caso emblemático de haraquiri político é o da Venezuela. Ela tinha uma democracia imperfeita, é verdade, mas real, com imprensa livre, eleições genuínas, partidos políticos diversos, e mal e mal, o país progredia. Infelizmente, grassavam a corrupção e o desperdício, e isso levou uma maioria de venezuelanos a descrer da democracia e confiar sua sorte a um caudilho messiânico: o comandante Hugo Chávez.
Em oito oportunidades eles puderam corrigir seu erro e não o fizeram, votando todas as vezes por um regime que os levava ao precipício. Hoje eles pagam caro sua cegueira. A ditadura é uma realidade asfixiante, fechou estações de televisão, de rádio e jornais, encheu os cárceres de dissidentes, multiplicou a corrupção a extremos vertiginosos - um dos principais dirigentes militares do regime dirige o narcotráfico, a única indústria que floresce num país onde a economia desandou e a pobreza triplicou - e onde as instituições, desde os juízes até o Conselho Nacional Eleitoral, são subservientes ao poder.
Embora haja uma significativa maioria de venezuelanos que quer voltar à liberdade, isso não será fácil: o governo de Nicolás Maduro demonstrou que, embora inepto para tudo o mais, na hora de fraudar eleições e encarcerar, torturar e assassinar opositores; sua mão não treme.
O haraquiri não é uma especialidade terceiro-mundista, porém. Na civilizada Europa ele também é praticada de tempos em tempos: Hitler e Mussolini chegaram ao poder por vias legais e um bom número de países centro-europeus se atiraram aos braços de Stalin sem maiores pudores. O caso mais recente parece ser o da Grécia, que, em eleições livres, acaba de levar ao poder - com 36% dos votos, o Syriza, um partido demagógico e populista de extrema esquerda que se aliou para governar com uma pequeno grupo de direita ultranacionalista e antieuropeu. O Syriza prometeu uma revolução e o paraíso. No estado catastrófico em que se encontra o país que foi berço da democracia e da cultura ocidental talvez seja compreensível essa catarse sombria do eleitorado. Mas, em vez de superar as pragas que os assolam, essas poderiam recrudescer agora se o novo governo se empenhar em cumprir o que prometeu a seus eleitores.
Essas pragas são uma dívida pública vertiginosa de 317 bilhões de euros com a União Europeia e o sistema financeiro internacional, que resgataram a Grécia da quebra. Ela equivale a 175% do Produto Interno Bruto do país. Desde o início da crise, o PIB da Grécia caiu 25% e a taxa de desemprego chegou perto de 26%. Isso significa o colapso dos serviços públicos, uma queda atroz dos níveis de vida e um crescimento canceroso da pobreza. A se ouvir os dirigentes do Syriza e seu inspirado líder - o novo primeiro-ministro Alexis Tsipras -, essa situação não se deve à inépcia e à corrupção desenfreada dos governos gregos ao longo de várias décadas, que, com irresponsabilidade delirante, chegaram a apresentar balaços e informes econômicos fraudados à UE para dissimular seus desmandos, mas às medidas de austeridade impostas pelos organismos internacionais à Grécia para resgatá-la da impotência a que as más políticas a haviam conduzido.
O Syriza propôs acabar com a austeridade e com as privatizações, renegociar o pagamento da dívida com a condição de que houvesse um cancelamento da maior parte dela, e reativar a economia, o emprego e os serviços com investimentos públicos contínuos. Um milagre equivalente ao de curar um doente terminal fazendo-o correr maratonas.
Desse modo, o povo grego recuperaria uma "soberania" que, ao que parece, a Europa em geral, a troica, o governo da senhora Merkel, em particular, lhe haviam arrebatado.
O melhor que poderia ocorrer é que essas bravatas da campanha eleitoral fossem arquivadas agora que o Syriza tem responsabilidades de governo e, como fez François Hollande na França, ele reconheça que prometeu coisas mentirosas e impossíveis e retifique seu programa com espírito pragmático, o que, sem dúvida, provocará uma decepção terrível entre seus ingênuos eleitores. Se não o fizer, a Grécia poderá enfrentar a bancarrota, a saída do euro e da União Europeia, e afundar no subdesenvolvimento. Há sintomas contraditórios e ainda não está claro se o novo governo grego dará marcha à ré. Ele acaba de propor, em vez do cancelamento, uma fórmula picaresca e velhaca que consiste em converter sua dívida em duas classes de bônus, uns reais, que iriam sendo pagos à medida que sua economia crescesse, e outros fantasmas, que iriam se renovando ao longo da eternidade. França e Itália, também vítimas de graves problemas econômicos, manifestaram não ver com maus olhos semelhante proposta. Ela não prosperará, com certeza, porque nem todo país europeu perdeu o senso de realidade.
Em primeiro lugar, e com muita razão, vários membros da União Europeia, além da Alemanha, recordaram a Grécia de que não aceitam "quitações", nem explícitas nem dissimuladas, e os países devem cumprir seus compromissos. Os mais severos a esse respeito foram Portugal, Espanha e Irlanda, que, depois de grandes sacrifícios, estão saindo da crise depois de cumprir com suas obrigações.
A Grécia deve 26 bilhões à Espanha. A recuperação espanhola custou sangue, suor e lágrimas. Por que os espanhóis teriam de pagar de seus bolsos as más políticas dos governos gregos, além de já estar pagando pelas políticas dos seus? A Alemanha não é culpada de um bom número de países da Europa comunitária estar com sua economia arruinada. A Alemanha teve governos prudentes e competentes, austeros e honrados, e, por isso, enquanto outros países se desestabilizavam, ela crescia e se fortalecia. E convém não esquecer que a Alemanha teve de absorver e ressuscitar um cadáver - a Alemanha comunista - também à custa de formidáveis esforços, sem se queixar, sem pedir ajuda a ninguém, só com o empenho e o estoicismo de seus cidadãos.
Por outro lado, o governo alemão da senhora Merkel é europeísta decidido. A melhor prova disso é a maneira generosa e constante com que apoia, com seus recursos e suas iniciativas, a construção europeia. Só a proliferação dos estereótipos e mitos ideológicos explica esse fenômeno de transferência freudiana que leva a Grécia a culpar o país mais eficiente da União Europeia pelos desastres que provocaram os políticos que, durante tantos anos, o povo grego enviou ao governo com seus votos. /TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK
É ESCRITOR PERUANO E PRÊMIO NOBEL
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