Os governos da América Latina têm adotado medidas para frear a disseminação do novo coronavírus, mas é grande a dificuldade para conter esse avanço entre 1,6 milhão de pessoas que formam a população carcerária da região, segundo dados do World Prison Brief, plataforma do Instituto para a Investigação de Política Criminal e de Justiça (ICPR, na sigla em inglês).
Ainda não há vacina ou remédio comprovado contra o coronavírus e para evitar a disseminação da covid-19 a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda o isolamento social e lavar bem as mãos com água e sabão ou usando álcool em gel - o que fica praticamente impossível para a população carcerária se não houver ações do Estado.
Na semana passada, a alta-comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, pediu que os governos tomem medidas urgentes para proteger a saúde e a segurança das pessoas em detenção.
“Cada país tem suas dificuldades específicas. Os sistemas de saúde em centros penitenciários tendem a ter menos capacidade de resposta. Além disso, são lugares propícios à rápida disseminação de doenças contagiosas.
Por isso, manter o distanciamento social e ter água e elementos de higiene são os principais desafios”, explica Alejandro Marambio Avaria, assessor regional para a América Latina em Sistemas Penitenciários do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV).
De acordo com o estudo do World Prison Brief, a maior parte dos presos da América Latina se concentra no Brasil (773 mil) e no México (198 mil), os dois países da região cujos governos mais demoraram para agir contra o coronavírus.
Os presidentes Jair Bolsonaro e Andrés Manuel López Obrador saíram à ruas contrariando as recomendações da OMS e expressaram mais de uma vez que fechar o comércio e restringir o transporte público seria muito danoso à economia de seus países.
A chegada do vírus nas penitenciárias é considerada mais preocupante em 11 dos 20 países da região, se levarmos em conta que nesses locais há uma superlotação das celas que passa de 100% da capacidade dos locais: Haiti (454,5%), El Salvador (333,3%), Guatemala (333,2%), Bolívia (253,9%), Peru (232,2%), Nicarágua (190,9%), República Dominicana (183,4%), Honduras (178,8%), Brasil (167%), Venezuela (153,9%) e Colômbia (149,7%) - de acordo com os dados de março de 2019 do World Prison Brief.
“As pessoas enxergam a massa carcerária como sendo uma coisa homogênea, todos são pessoas más, que precisam ser excluídas, eliminadas da sociedade e isso permite a suspensão dos direitos humanos. Nesses momentos de calamidade, esses grupos tendem a ser esquecidos. E estamos falando do direito à vida”, afirma o professor da ESPM Luiz Peres Neto que estuda a área penal há 16 anos.
Para tentar controlar a disseminação do coronavírus nas prisões, o CICV explica que atua em conjunto com os governos em etapas e a primeira delas é justamente evitar que a covid-19 chegue com força nesses locais.
“O mais importante é o compromisso dos sistemas de saúde de cada país. Os sistemas penitenciários devem ter contato direto com eles e cumprir todas as orientações e ordens. Em seguida cada país se adapta para estabelecer as melhores estratégias de acordo com seus recursos”, explica Marambio.
Proteção x liberdade
Com a notícia do aumento de casos da covid-19 pelo mundo, o pânico começou a se espalhar também pelas prisões e os governos se apressaram em tomar medidas. Em alguns casos, a reação foi com motins e fugas.
Na Colômbia, foi decretado estado de emergência carcerária, ferramenta que permite o traslado e o isolamento de presos, além de reduzir a pena de condenados por crimes leves com mais de 60 anos, doentes ou grávidas. Além disso, nos próximos três meses serão feitas reformas de banheiros com o auxílio do CICV, que também fornecerá materiais de higiene em 20 centros de detenção.
No Brasil, medidas também foram tomadas. Em São Paulo, as visitas e saídas temporárias da prisão foram suspensas, levando quase mil presos a fugir de prisões no Estado após quatro rebeliões.
Na Colômbia, motins em 13 prisões de forma simultânea terminaram com 25 detidos mortos e 83 feridos; revoltas em duas prisões da Argentina deixaram 5 mortos, e uma no Peru terminou com dois mortos.
“Nos interessa que nesse processo se leve sempre em consideração a saúde dos funcionários, das pessoas privadas de liberdade e que cada restrição de direito obedeça a razões sanitárias, elegendo sempre a resposta com menor quantidade de restrições, que proteja a saúde física e mental de todos que convivem nas penitenciárias”, afirma Marambio, da CICV.
O professor Peres Neto ressalta que implementar as medidas necessárias para conter a propagação do vírus requer um planejamento importantes dentro das prisões. “Outro ponto importante é a logística. Como manter a rotina? Você precisa melhorar o sistema de higienização, diminuir o número de presos por cela, tem a questão dos horários das refeições, já que as pessoas precisam estar mais distantes umas das outras, então talvez precise aumentar os turnos de refeições. É uma logística que impacta o dia a dia das prisões”.
Progressão de pena
Uma medida que vem sendo estudada em países europeus é a diminuição da pena em determinados casos para diminuir a população carcerária. “As medidas de suspender as visitas e limitar as atividades sócio-educativas, por exemplo, têm uma carga muito pesada para quem vive naquela situação.
Pode ser feita uma progressão da pena, levando em conta o histórico do preso. A França por exemplo está discutindo isso, mas é difícil. Como você garante que não há um risco ao soltar essa pessoa?”, diz o professor.
Essa medida também é cogitada por Marambio. “O importante é o compromisso com a dignidade humana. Tendo em conta a vida das pessoas privadas de liberdade e a segurança dos cidadãos é possível encontrar estratégias de cumprimento de pena diferentes do encarceramento numa prisão para os que não sejam um risco à sociedade. Isso permitiria trabalhar muito melhor a resposta de saúde para o resto deles (presos).”
A ONU diz que o Estado tem o dever de proteger a saúde física e mental, além do bem-estar dos reclusos, conforme estabelecido nas Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros, documento também conhecido como Regras de Nelson Mandela, adotado em dezembro de 2015.