Surge arma não convencional iraquiana: o suicida

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Por Agencia Estado
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É um morto entre centenas, milhares: o mártir Ali, que se explodiu na cidade santa de Najaf, matando consigo vários soldados americanos - quatro ou 12, segundo diferentes versões. Esse tipo de ação camicase é temerária e preocupante. É compreensível: o suicídio do oficial Ali Jaafar Moussa demonstra a detestável resolução dos iraquianos. Esse suicídio tem outros efeitos. No futuro, todo civil iraquiano será considerado pelos soldados americanos ou ingleses como um camicase em potencial. Portanto, cada iraquiano será examinado com suspeição, revistado, interrogado, etc., etc. Ora, vale lembrar que o sonho dos estrategistas americanos era o seguinte: um povo oprimido por Saddam Hussein se jogando no colo dos bons fuzileiros navais que os estavam livrando de Satã. É o retrato inverso que se desenha: descobre-se que os iraquianos estão tão carregados de rancor que eles se matam, ameaçando com sua própria morte os seus invasores. O Pentágono, que contava com a fraternidade entre os iraquianos e os soldados americanos, deve reconsiderar os seus planos. Creio que há qualquer coisa de mais obscuro ainda na angústia, quase sagrada, que se apodera dos homens diante dos camicases. Esta angústia pode ser definida da seguinte maneira: Como é possível que nós, os americanos, que somos uma população tão gentil, atraímos tamanho ódio contra nós, um ódio que chega até a morte voluntária? Com outro corolário, os americanos continuam: os iraquianos utilizam, como nós os aviões, uma arma de destruição não convencional. Infelizmente, essa arma não convencional não é nem o antraz, nem a varíola, uma química. Tão surpreendente que o bravo Hans Blix, chefe dos inspetores da ONU, não a encontrou, essa arma não convencional: é o suicida. A primeira aparição desta arma não convencional é muito antiga: o traço original continua, por acaso, vivo. Roma, século 1. Lá vive um escravo grego, Epíteto. Esse escravo foi espancado por seu mestre, Epafrodite, que amputou uma de suas pernas com um aparelho de tortura. Epíteto disse calmamente: "Mestre, o senhor vai arrancar a minha perna". Sem a perna, acrescentou: "Veja bem, mestre, eu o preveni. E a minha perna se foi". O mestre continuou com o suplício. Epíteto disse a ele, tranqüilamente: "Mestre, você vai me matar". O mestre desistiu. O escravo tomou o poder. Libertado, Epíteto tornou-se um dos grandes filósofos estóicos. O filósofo alemão Friedrich Hegel, no começo do século 19, utilizou o exemplo de Epíteto para fundar sua moral do mestre e do escravo. A idéia de Hegel era a seguinte: o escravo toma o poder do mestre, quando opõe sua própria morte à violência que lhe é impingida. Dessa maneira, explica-se o terror negro, indizível e inefável que paira em todos os lugares onde um homem, para defender seu próprio território, seja justamente ou injustamente, decide se imolar. Em Praga, em 1968, quando a União Soviética invadiu a Checoslováquia; no Sri Lanka, na luta dos Tigres da Libertação Tamil; em Israel, onde os palestinos se suicidam para massacrar judeus. O horror que envolve, então, os espectadores volta a raízes arcaicas e moribundas: na guerra dos homens se convida, pelo suicídio, a um ato cujo gesto insano dilacera o tecido do mundo. Uma brecha está aberta e por ela sopram ventos que vêm do nada. Os critérios ordinários da moral - o mal e o bem, o justo e o injusto, a razão e a insensatez -, todas essas noções que fundamentam a idéia do homem e a idéia da sociedade, todas elas são balanceadas pelo vento infernal que acompanha a morte voluntária. O mundo inteiro está empanturrado e contaminado por essa morte: o partido do suicida que justificou e, às vezes, também armou esse ato infame. O partido dos poderosos, que incentivou um ser humano a utilizar, na falta de outras munições a munição absoluta: sua própria morte. O uso da morte voluntária conduz às fronteiras da humanidade. Para além dele, começa o território do nada. Veja o especial :

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