EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais. Escreve uma vez por semana.

Opinião|Terreno inexplorado

Na zona desmilitarizada, Kim e Moon deram um grito de independência

PUBLICIDADE

Foto do author Lourival Sant'Anna
Atualização:

Desde o início da distensão, o ditador norte-coreano, Kim Jong-un, definiu como objetivo a “desnuclearização da Península Coreana”. No Ocidente, isso foi traduzido como renúncia unilateral do programa nuclear da Coreia do Norte. Pareceu incompreensível, dado o esforço em atingir o status de potência nuclear e o ufanismo com o qual celebrou cada passo nessa direção. Mas não é disso que se trata. A Coreia do Norte exige como contrapartida a retirada do arsenal nuclear americano.

PUBLICIDADE

+ Trump acelera conversas com Coreia do Sul para encontrar Kim

No jargão militar, armas nucleares são chamadas de “ativos estratégicos”, em oposição às armas convencionais, que são táticas. Em uma guerra, empregam-se armas convencionais. O arsenal nuclear tem função de projetar poder, inibir ações inimigas e reduzir as hipóteses de ameaça. A desnuclearização da península é uma decisão não da Coreia do Sul, mas dos EUA. Ao aceitá-la, os americanos abririam mão da supremacia militar na região que concentra seus adversários mais poderosos – China e Rússia – e alguns de seus aliados mais importantes economicamente: Japão, Coreia do Sul e Taiwan.

Nesta sexta-feira, o líder norte-coreano, Kim Jong-un, e o presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in, selaram acordo para conseguir "a completa desnuclearização" da península e formalizar o fim do estado de guerra entre os dois países Foto: Korea Summit Press Pool via AP, File

O Japão, que assim como a Coreia do Sul tem um acordo de defesa mútua com os EUA, perderia o guarda-chuva nuclear americano sem ter nem sequer participado da negociação. Tudo isso é improvável, e todos os atores envolvidos sabem disso. Então, quais os objetivos realistas da reunião de cúpula de sexta-feira entre Kim e o presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in?

Os dois reconhecem que a hostilidade entre as duas Coreias as enfraquece, na região do planeta que sofre as maiores transformações. A China está emergindo da posição de potência regional para disputar poder global com os EUA. O Japão se movimenta para garantir sua capacidade de se defender, independentemente dos americanos.

Publicidade

A eleição de Donald Trump, que inicialmente pôs em dúvida a própria disposição de defender o Japão em uma guerra, para depois reafirmar o compromisso com o pacto de defesa mútua, demonstrou a vulnerabilidade do arranjo. E reforçou a percepção de que o período do pós-guerra, do qual o pacto faz parte, chegou ao fim.

O risco de conflito é alimentado pelo nacionalismo do presidente Xi Jinping; pela reivindicação chinesa do arquipélago japonês de Senkaku; pela projeção da China sobre a região, que já abarca a cooptação de aliados da Índia em seu quintal, como Nepal, Sri Lanka e Maldivas; e pelo investimento das imensas reservas chinesas na construção de infraestrutura de uso híbrido, civil e militar, da África Ocidental ao Leste Asiático.

Entre Japão e China está a Península Coreana. Daí a convergência de objetivos das duas Coreias. O pensamento convencional é o de que uma reunificação colocaria a península sob domínio da Coreia do Sul, que tem uma economia cem vezes a do Norte e o dobro da população. Mas, entre unificação e hostilidade, há um espectro de possibilidades. É isso que passa a ser explorado agora em Seul e Pyongyang.

Internamente, isso se tornou possível depois que Kim consolidou seu poder, realizou reformas que produziram relativa prosperidade, mas passou a se preocupar com o cerco das novas sanções. E Moon, defensor da reaproximação, elegeu-se presidente, em maio do ano passado.

Trump disse que podia desistir da cúpula com Kim, prevista para o fim de maio ou início de junho. Na sexta-feira, comemorou no Twitter que a guerra na Coreia poderia acabar e agradeceu a Xi por sua “grande ajuda”. Corre em paralelo a guerra comercial entre EUA e China. Os chineses sempre usaram a Coreia do Norte como uma carta na disputa com os EUA. Não mais. Kim e Moon deram um grito de independência. Ao cruzar a zona desmilitarizada, entraram num terreno inexplorado. 

Publicidade

Opinião por Lourival Sant'Anna

É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.