Terrorismo foi vencido mas não eliminado

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Por Agencia Estado
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Cem dias. Foram necessários cem dias para que o surpreendente desafio feito ao Ocidente pelos terroristas de Bin Laden com seus "fanáticos por Deus" se esvaziasse de uma maneira lastimável. Lembremos: no dia seguinte ao dia 11 de setembro, esperávamos o Apocalipse, aviões sobre Westminster, uma América enlouquecida, bombas atômicas, o mundo muçulmano inclinado para o lado dos afegãos, e nada disso aconteceu. O planeta se acalmou. Readormeceu. Bin Laden está em um buraco, fugindo ou morto. Remissão? Trégua? Dissimulação? Inconsciência? Antes de responder, é preciso examinar como o Ocidente ganhou essa "partida". Primeira lição: Bush não é um idiota. Ao contrário do que diziam os franceses, sempre mais maliciosos que o mundo inteiro, que Bush parecia quase não saber achar Cabul em um mapa geográfico. E conseguiu reunir em volta dele uma equipe às vezes desagradável (Donald Rumsfeld), às vezes sutil (Colin Powell), mas sempre competente e eficaz. Segunda lição, também importante: viu-se que, quando o Ocidente deixa de ter medo das sombras, sabe intimidar o terror, no caso, a loucura criminosa dos fundamentalistas islamitas. Há anos o avanço do islamismo sangrento era considerado inexorável: os frenéticos acumulavam as vitórias: Argélia e Sudão, Afeganistão, Hamas e Jihad palestino, Irã, Filipinas, por toda parte o trunfo estava no crime. O Ocidente balbuciava, hesitava, recuava. Ora, no Afeganistão, ou seja, diante do desafio mais aterrorizante, o mais perverso fundamentalismo, a espiral fatal nitidamente se rompeu. Em cem dias. Certamente, nos dez últimos anos, o Ocidente já tinha reagido vitoriosamente contra algumas violências: na Bósnia, assim como no Kosovo, bastou os aviões subirem ao céu para que o presidente iugoslavo Slobodan Milosevic fosse reduzido ao que foi: um homem sem consistência e difamado. Mas a ameaça sérvia (laica e não religiosa) obedeceu às regras clássicas da guerra. Havia um Estado. Havia um exército. Havia uma linha de frente. Desde então, a superioridade em matéria de armas, técnicas, aviões e dinheiro do campo ocidental pôde entrar totalmente no jogo e destruir Milosevic. O mesmo aconteceu no Iraque. Ao contrário, no Afeganistão, o combate foi mais complicado, mais irracional. No Afeganistão, não foi um Estado ou uma nação que se lançou ao ataque. Não se sabe o que foi. O inimigo atirou a partir do nada. Foi transnacional, multiforme e disforme, arcaico e pós-moderno, invisível e flagrante. Tornou-se quase mítico. Os sinais que ele nos enviou vieram de uma época diferente da nossa, de uma outra lógica e de um outro espaço: o chefe da batalha vagueia nas velhas grutas onde vaticinavam os profetas dos antigos livros sagrados. Motivo suficiente para desencorajar os alunos de West Point e os soldados formados com os princípios de Napoleão e de Clauzewitz. Ora, bastam algumas seqüências de bombas para que esses exércitos do mistério, esses pretorianos do imperceptível e quase do invisível se liqüefaçam e saiam em debandada como coelhos. Quanto a isso, o estranho é que, para abater esses exércitos obscuros, o Ocidente ou principalmente os Estados Unidos nem sequer tiveram que imaginar novas estratégias. No entanto, nos momentos seguintes ao dia 11 de setembro, Bush e seus ministros repetiram sem parar, prometendo-nos novos métodos de guerra, armas jamais vistas, táticas desconhecidas e mortais. Ora, não vimos nada disso: para abater os "invisíveis" das montanhas afegãs, os americanos e a Aliança do Norte desenterraram toda a panóplia das guerras do século anterior: soldados, aviões, bombas. Nem sequer um material mais moderno: os tanques R-55 entregues ao Norte pela Rússia ou os B52 americanos que têm meio século de idade. Devemos concluir, após essa vitória relâmpago, que o perigo islamita, o do terrorismo, foi realmente abatido? Seria uma imprevidência: ontem, exagerou-se a gravidade do perigo islamita. Não seria prudente hoje subestimá-lo. Na verdade, a vitória americana foi obtida graças a algumas decisões audaciosas, inteligentes, mas perigosas e que correm o risco de ter um grande peso nos destinos do mundo durante muito tempo. Para evitar que o novo século comece dando razão às detestáveis teses de Huntington sobre a divisão do mundo em dois campos (cristão contra Islã), os assessores de Bush tiveram a habilidade de arregimentar rapidamente, na coalisão antiterror, os países muçulmanos. E com um belo êxito. Mesmo o Paquistão, recente plataforma do terror em geral e dos talebans em particular, entrou na coalizão. Mas para conseguir esse resultado, a diplomacia americana teve que oferecer uns docinhos. Por exemplo, ao mesmo tempo em que os Estados Unidos tinham há muito tempo optado pela Índia, no braço de ferro que opõe Índia e Paquistão, de repente, a Índia foi negligenciada e o general Musharraf adulado, mimado e acariciado. Da mesma maneira, ao mesmo tempo que Bush tinha mostrado há seis meses que não levava nada a sério os palestinos, de repente seu coração começou a sangrar, ao pensar nos pobres árabes de Gaza. Mas, hoje, depois que Bin Laden se dissipou, a mesma diplomacia americana tende a esquecer o que pensava ainda no mês passado, e a retomar seus esquemas do período anterior ao dia 11 de setembro. No Oriente Médio, a brusca afeição dada aos palestinos secou. No subcontinente indiano, e após o atentado perpetuado contra o Parlamento indiano por terroristas paquistaneses da Caxemira, a diplomacia de Washington retomou suas antigas preferências e se inclina novamente em favor da Índia. Essas idas e vindas são explicáveis, mas perigosas. Os povos não esquecem. Se eles se sentirem traídos, um novo ódio ameaça infectar os cérebros. Outro enigma é saber em que vai se transformar o terrorismo, após seu duro fracasso: é o fim dos grandes sonhos apocalípticos das décadas de 1980 e de 1990? Os fundamentalismos vão se dissolver como por um passe de mágica? Temo sobretudo que eles não resistam e sonhem de outras formas. Na psicanálise, existe uma forte noção: "o pós-trauma". Freud quer dizer com isso que um episódio traumatizante e aparentemente superado não morre. Esse episódio "finge de morto". Ele se esconde. Desce pelas águas cinzentas do inconsciente, mas continua a palpitar. E, um dia, reaparece em outro cenário, em um novo campo de batalha e com outras armas. Por exemplo, uma humilhação a que se foi submetido na infância, uma crueldade ou uma injustiça parece esquecida. Mas não é verdade. E vinte anos depois, surgirão desequilíbrios mais, ou menos, graves. Estou convencido de que o "pós-trauma" de Freud aplica-se não só à história do indivíduo, mas à História dos homens. Foi invocando Saladino, o grande chefe árabe das Cruzadas (século 12), que Bin Laden inflamou seus devotos. Foi porque os sérvios perderam a batalha do campo dos melros contra os albaneses na Idade Média, que alguns séculos depois, explodiu a guerra entre sérvios e kosovares albaneses. É porque as Cruzadas ainda o povoam que Huntington vê um "conflito" entre Ocidente e Islã. É por causa da "guerra dos cem anos" (1337-1453), na França, que o pugilista francês Halimi, há alguns anos, tendo vencido o pugilista inglês Turpin levantou um braço triunfante e gritou para a multidão em regozijo: "Joana d´Arc, eu te vinguei!" Da mesma maneira, o terror. Bloqueado aqui, não corre o risco de renascer lá? Tendo aprendido que não podia desafiar diretamente o gigante ocidental os Estados Unidos, não ficará tentado a optar por formas mais ágeis, mais diluídas, mais perversas? Dois sapatos carregados de explosivos, há poucos dias, pela manhã, na linha Paris-Miami foram suficientes para reavivar na América e no mundo os fantasmas do dia 11 de setembro. Com ou sem razão? De qualquer maneira, esses dois sapatos mostram que as possíveis táticas do terror continuam, hoje como ontem, incalculáveis. É por isso que se pode desejar que o Ocidente, após ter acertado suas contas com o saudita (um parágrafo sobre a Arábia Saudita deveria figurar aqui, mas é preciso resumir) e com seus amigos, não se contente em remanejar um arsenal, uma estratégia antiterror. É também indispensável que se reflita sobre as causas do terror. Por incrível que pareça, foi George W. Bush que deu esta pista. Em uma noite de grande emoção (parece-me que no dia do bombeiro heróico em Nova York), vimos o presidente do mais poderoso país da história com lágrimas nos olhos e no alto dos escombros, deixar se afundar na emoção e colocar a questão fundamental: - Mas enfim, por que aquelas pessoas têm tanto ódio contra nós? Por quê? Foi uma questão soberba. Infelizmente, a resposta não veio. Ou melhor, a resposta foi catastrófica, pois Bush falou (também cito de memória): - No entanto, somos tão bons, nós os americanos... Sem dúvida aí está um dos campos que seria importante abrir, prioritariamente, ao lado dos campos militar e econômico: perguntar por que esses ocidentais, esses americanos, tão maravilhosamente bons, tão deliciosamente generosos, tão delicados em tudo suscitam tanta raiva. Haveria, no sistema ocidental um elemento misterioso, mascarado, pérfido, uma espécie de veneno clandestino que transformaria tanta bondade em maldade? Em todo caso, aos olhos dos povos esquecidos, dos povos ofendidos e humilhados? Trata-se de uma questão realmente difícil! Uma questão de 50 milhões de dólares, é o caso de dizer.

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