The Economist: A ameaça da esquerda iliberal

Democracia sofre com populistas de direita, mas não subestime o perigo das políticas identitárias esquerdistas

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Por The Economist
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Há algo de muito errado com o progressismo ocidental. Em seu âmago, o liberalismo político clássico acredita que o progresso humano advém de debates e reformas. A melhor maneira de navegar por mudanças disruptivas em um mundo dividido é por meio de um comprometimento universal com a dignidade individual, o mercado livre e o Estado limitado. Ainda assim, uma ressurgente China escarnece do liberalismo, qualificando-o como egoísta, decadente e instável. No próprio Ocidente, populistas de direita e esquerda ralham contra o liberalismo por seu suposto elitismo e privilégios.

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Ao longo dos últimos 250 anos, o liberalismo clássico ajudou a promover progressos sem paralelo. Isso não desaparecerá como fumaça. Mas passa por um teste severo, da mesma maneira que cem anos atrás, quando os cânceres do bolchevismo e do fascismo começaram a consumir as entranhas da Europa liberal. É hora de os liberais saberem o que estão enfrentando e como reagir.

Em nenhum outro lugar essa luta é tão feroz quando nos Estados Unidos, onde, nesta semana, a Suprema Corte optou por não derrubar uma draconiana e bizarra lei antiaborto. A mais perigosa ameaça no lar espiritual do liberalismo vem da direita trumpista. Populistas conspurcam edificações liberais, como a ciência e o estado de direito, qualificando-os como fachadas de uma conspiração de um Estado oculto contra o povo. Eles subordinam fatos e razão a emoções tribais. A duradoura falácia de que a eleição presidencial de 2020 foi roubada indica a direção seguida por impulsos desse tipo. Se as pessoas não conseguem resolver suas diferenças por meio de debate e instituições acreditadas, apelam para a força.

Nos EUA, o termo 'liberal' passou a ter uma esquerda 'ileberal' Foto: Carlo Allegri/Reuters

O ataque da esquerda é mais difícil de compreender, em parte porque, nos EUA, o termo “liberal” passou a incluir uma esquerda iliberal. Descrevemos esta semana como um novo estilo de política recentemente emergiu de departamentos de universidades de elite. Quando recém-graduados assumiram postos nas principais empresas de comunicação e na política, no setor privado e na educação, eles trouxeram consigo um horror a se sentir “inseguros” e uma pauta obcecada com uma visão estreita da busca por justiça para grupos identitários oprimidos. Eles também trouxeram consigo táticas para fazer valer um purismo ideológico, ao não dar plataforma para seus inimigos e cancelar os aliados que transgridem – ecoando o estado confessional que dominava a Europa antes de o liberalismo clássico se enraizar, no fim do século 18.

Superficialmente, a esquerda iliberal e os liberais clássicos, como The Economist, querem muitas coisas parecidas. Ambos acreditam que as pessoas deveriam ter o direito de florescer plenamente, sem importar sua sexualidade ou raça. Ambos compartilham uma desconfiança em relação a autoridade e interesses inveterados. Ambos acreditam que mudanças são desejáveis.

Contudo, liberais clássicos e progressistas iliberais discordam completamente em relação à maneira como tornar isso realidade. Para liberais clássicos, a direção precisar do progresso é incognoscível. O progresso deve ser espontâneo e ir de baixo para cima — e depende da separação dos poderes, para que nenhum indivíduo ou grupo seja capaz de controlar o poder por muito tempo. Em contraste, os esquerdistas iliberais colocam o poder que detêm no centro das coisas, porque têm certeza que o progresso real somente é possível depois de desmanteladas discriminações raciais, sexuais e de outros tipos.

Essa diferença de metodologia tem implicações profundas. Liberais clássicos acreditam no estabelecimento de condições iniciais justas e em permitir que os eventos se desdobrem por meio da competição – por exemplo, eliminando monopólios corporativos, abrindo as entidades de classe, reformando radicalmente a tributação e tornando o ensino plenamente acessível. Progressistas consideram o laissez-faire uma encenação mantida por interesses poderosos destinada a preservar o status quo. Em vez disso, eles acreditam em impor a “equidade” – o resultado que eles consideram justo. Por exemplo, Ibram X. Kendi, um acadêmico ativista, assegura que qualquer tipo de política que não leve em conta a cor das pessoas, incluindo as avaliações padronizadas para crianças, seria racista se isso acabar ressaltando diferenciais raciais médios, por mais bem intencionadas que sejam suas motivações.

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Kendi está certo em querer uma política antirracista que funcione. Mas sua abordagem explosiva pode fazer com que crianças em desvantagem deixem de receber a ajuda que necessitam e que outras não consigam dar vazão plena a seus talentos. Indivíduos, não apenas grupos, devem ser tratados de maneira justa para que as sociedades floresçam. Além disso, as sociedades têm objetivos variados. As pessoas se preocupam com crescimento econômico, bem-estar social, crime, meio ambiente e segurança nacional, e políticas não podem ser julgadas simplesmente em relação a avanços em um grupo particular. Liberais clássicos usam o debate para discutir prioridades e contrapartidas em uma sociedade pluralista e depois usam eleições para estabelecer seu curso. A esquerda iliberal acredita que o mercado de ideias está viciado, como todos os outros. O que se apresenta como evidência e argumento, afirmam eles, é na verdade mais uma afirmação de poder bruto da elite.

Progressistas da velha guarda continuam defendendo a liberdade de expressão. Mas progressistas iliberais pensam que a equidade requer que as condições se tornem desfavoráveis aos privilegiados e reacionários. Isso significa restringir sua liberdade de expressão, usando um sistema de castas de vitimização, no qual aqueles no topo devem se submeter àqueles com maior direito à justiça reparadora. Isso também envolve fazer de supostos reacionários exemplos, punindo-os quando eles dizem algo que é usado para fazer pessoas menos privilegiadas se sentirem inseguras. Os resultados são denúncias, cancelamentos e a supressão de sua plataforma.

Milton Friedman disse uma vez que “uma sociedade que coloca a equidade acima da liberdade vai acabar sem nenhuma delas”. Ele estava certo. Progressistas iliberais pensam que sabem como acabar com a opressão de minorias. Na realidade, a fórmula deles oprime os indivíduos – e, nesse sentido, não é tão diferente dos planos da direita populista. De maneiras peculiares e diferentes, ambos os extremos colocam o poder acima do processo, os fins acima dos meios e os interesses de grupos acima da liberdade de indivíduos.

Orbán espera desempenhar um papel fundamental na recomposição da direita europeia Foto: Laszlo Balogh / AP

Países com líderes autoritários admirados pelos populistas, como a Hungria de Viktor Orbán e a Rússia de Vladimir Putin, demonstram que poder irrestrito é uma fundação ruim para o bom governo. Utopias como Cuba e Venezuela demonstram que os fins não justificam os meios. E em nenhum lugar indivíduos se conformam espontaneamente com estereótipos raciais e econômicos impostos pelo Estado.

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Quando populistas colocam partidarismos acima da verdade, sabotam o bom governo. Quando progressistas dividem as pessoas em castas em competição, fazem os cidadãos brigarem entre si. Ambos diminuem instituições que resolvem conflitos sociais. Por isso recorrem com frequência à coerção, apesar de gostarem tanto de falar em justiça.

Se o liberalismo clássico é tão melhor do que as alternativas, porque ele luta pela sobrevivência por todo o mundo? Uma razão é que populistas e progressistas se retroalimentam patologicamente. O ódio que cada campo tem pelo outro inflama seus apoiadores — o que beneficia ambos os campos. Criticar os excessos de suas própria tribo soa como traição. Sob essas condições, o debate liberal se asfixia. Considere o Reino Unido, onde a política foi consumida nos anos recentes pelas disputas entre os conservadores favoráveis ao Brexit e os trabalhistas de Jeremy Corbyn.

Certos aspectos do liberalismo político vão contra a tessitura da natureza humana. O liberalismo político exige que você defenda o direito de expressão de seus oponentes mesmo quando você sabe que eles estão errados. Você tem de estar disposto a questionar suas convicções mais profundas. Negócios não devem ser protegidos dos vendavais destrutivos da criação. As pessoas que você ama devem avançar por mérito próprio, mesmo que todos os seus instintos digam para você violar regras para ajudá-las. Você é obrigado a aceitar a vitória de seus inimigos nas urnas, mesmo achando que eles arruinarão seu país.

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Resumidamente, dá muito trabalho ser um liberal genuíno. Com o colapso da União Soviética, após seu último rival ideológico parecer destruído, elites arrogantes perderam contato com a humildade e o autoquestionamento liberais. Elas se renderam ao hábito de acreditar que sempre estiveram certas. Elas desenvolveram a meritocracia americana para favorecer seus iguais. Depois da crise financeira, elas produziram uma economia que cresceu vagarosamente demais para que as pessoas sentissem alguma prosperidade. Em vez de tratar críticos brancos da classe trabalhadora com dignidade, elas escarneceram se sua suposta falta de sofisticação.

Essa complacência permitiu aos oponentes do liberalismo culpá-lo por duradouras imperfeições — e, por causa da conduta racial dos EUA, insistir que o país nasceu podre. Em face a persistente desigualdade e racismo, liberais clássicos podem lembrar as pessoas que mudanças levam tempo. Mas Washington está quebrantado, a China está avançando estrondosamente, e o povo está inquieto.

Uma falta liberal de convicção. A complacência definitiva seria os liberais clássicos subestimarem a ameaça. Há um excesso de liberais de direita inclinados a escolher o indecente casamento de conveniência com os populistas. Há um excesso de liberais de esquerda concentrados na ideia de que eles mesmos também desejam justiça social. Confortam a si mesmos com o pensamento de que o liberalismo mais intolerante é marginal. Não se preocupem, dizem eles, a intolerância faz parte do mecanismo da mudança: concentrando-se nas injustiças, eles alteram o centro político.

Ainda assim, é precisamente combatendo as forças que movem as pessoas aos extremos que os liberais clássicos evitam que os extremos se fortaleçam. Aplicando princípios liberais, eles ajudam a resolver os muitos problemas da sociedade sem ninguém apelar para a coerção. Somente os liberais apreciam a diversidade em todas as suas formas e sabem como fazer dela uma força.

Somente os liberais são capazes de lidar de maneira justa com todos os temas, da educação ao planejamento, à política externa, para que as pessoas desprendam plenamente suas energias criativas. Os liberais clássicos têm de redescobrir o espírito de luta. Deveriam enfrentar valentões e canceladores. O liberalismo ainda é o melhor motor para o progresso equitativo. Os liberais têm de ter coragem para afirmar isso.

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