The Economist: Joe Biden mudará marcha na América Latina

Presidente dos EUA vai encontrar uma região em que o populismo floresceu recentemente com mais força

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Por The Economist
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Em 2013, depois que o WikiLeaks revelou que a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos grampeou o telefone de Dilma Rousseff, então presidente do Brasil, Joe Biden ligou para se desculpar. Um anos depois, o vice-presidente americano foi ao Brasil assistir a uma partida da Copa do Mundo com um presente: documentos secretos tornados públicos que evidenciavam abusos da ditadura militar brasileira (1964-85). A própria Rousseff foi torturada.

Donald Trump durante comício na Geórgia; argumento de fraude eleitoral divide republicanos Foto: MANDEL NGAN / AFP

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Rousseff qualificou Biden como “um vice-presidente sedutor”. Outros líderes latino-americanos não pensavam o mesmo. Otto Pérez Molina, ex-presidente da Guatemala, lamenta o dia em que se curvou à pressão de Biden para prolongar a vida da Comissão Internacional contra a Impunidade na Guatemala (Cicig), uma agência de combate à corrupção apoiada pela ONU. Pérez Molina expressou esse lamento em 2015, dentro de uma prisão militar, onde aguardava julgamento por acusações de corrupção. A Cicig forneceu as provas. Uma vez que Biden assumir o posto mais alto, não seria uma surpresa se seu interesse na América Latina minguasse, dadas as outras demandas que pesam sobre ele. A única anedota memorável a respeito da região no novo livro de memórias de Barack Obama é sua confissão de que apenas “sorria e assentia com a cabeça” durante um longo jantar, em 2011, pensando a respeito da guerra na Líbia enquanto o presidente do Chile discorria a respeito de exportações de vinho.

Ainda assim, Biden provavelmente dará atenção à América Latina. Ele era o homem de Obama para a região, que visitou 16 vezes. Emergências regionais, da migração em massa à cada vez mais fechada ditadura na Venezuela, exigirão sua consideração. Ele não tem o estilo intimidador de Donald Trump. Promoverá o estado de direito e esforços para combater as mudanças climáticas, preocupações que Trump ignorava categoricamente. Este ano, Biden deverá ser o anfitrião da trienal Cúpula das Américas. A América Latina mudou desde quando ele foi vice-presidente. Um fraco crescimento econômico minou a autoconfiança da região. A pandemia matou 541 mil pessoas na América Latina e no Caribe, um número de mortes superado apenas pelo da Europa, e causou a pior crise econômica em mais de um século. Os corruptos estão vencendo a guerra contra a corrupção. Descontentamentos a respeito de contratos sociais violados ocasionaram instabilidade e a eleição de presidentes populistas. Os venezuelanos estão fugindo de seu país, o que coloca pressão sobre os vizinhos. O êxodo da América Central, pausado pela pandemia, foi retomado. A democracia está em retrocesso. A Bertelsmann Foundation, que organiza uma escala de 10 pontos relativa à força da democracia nos países, revela que as pontuações de sete democracias da América Latina caíram 0,8 ponto ou mais desde 2010. Recentemente, o Congresso do Peru impediu o segundo presidente em 30 meses. Nayib Bukele, presidente de El Salvador, lançou as bases para uma ditadura. As eleições de 2021, a serem realizadas em países como Equador, Peru e Nicarágua, podem levar populistas ao poder ou consolidar governos autoritários. Quando Trump assumiu a presidência, em 2017, os governos da América Latina sofreram com um “medo de chamar a atenção”, afirma um ex-conselheiro da administração. Mas muitos passaram a gostar de Trump, em grande parte porque ele os deixava em paz, a não ser que permitissem a passagem de imigrantes para os EUA. O interesse dele em promover a democracia não ia além dos limites da “tríade da tirania” — Cuba, Nicarágua e Venezuela. Jair Bolsonaro, do Brasil, e Andrés Manuel López Obrador, do México, populistas de direita e de esquerda, respectivamente, sentiram uma afinidade por ele (Bolsonaro é um fã desavergonhado). Ambos esperaram um mês para reconhecer que Biden o havia derrotado. O mundo de Biden considera equivocada uma visão que restringe a promoção da democracia a três países. Compartilha do consenso pré-Trump segundo o qual a estabilidade na vizinhança depende do estado de direito, de uma sociedade civil forte e de um capitalismo mais justo.  Buscará maneiras de controlar a imigração mais humanas do que obrigar países a bloquear a passagem de imigrantes pelo seu território.

Confronto entre migrantes e aPolícia Nacional Civil deGuatemala Foto: Johan Ordonez/AFP

Biden quer retomar a possibilidade de pedidos de asilo nos EUA. Atualmente, o governo Trump força aqueles que chegam à fronteira a ficar no México. Biden deverá desfazer os pactos de Trump com os três países do Triângulo Norte da América CentralGuatemala, Honduras e El Salvador — segundo os quais os EUA podem enviar imigrantes de volta a esses países. Esse processo será vagaroso. Um objetivo mais nobre é tornar o Triângulo Norte um lugar melhor para viver. Juan Gonzalez, que integrará o Conselho de Segurança Nacional, foi voluntário do Corpo de Paz nas montanhas da Guatemala, origem de muitos imigrantes. Biden pretende gastar US$ 1 bilhão ao ano para melhorar as condições da América Central. Ele terá de usar o porrete e a cenoura. A corrupção está cada vez pior no Triângulo Norte. Parlamentares guatemaltecos enxotaram a Cicig; legisladores fecharam a homóloga Missão Contra a Corrupção e a Impunidade em Honduras (Maccih). Trump não se manifestou. Este mês, promotores americanos apontaram o presidente hondurenho, Juan Orlando Hernández, como participante de um esquema de tráfico de drogas (ele nega). O caso evidencia as limitações relativas ao gasto com segurança e estímulos econômicos quando o estado de direito é fraco, afirmou Eric Olson, do centro de estudos estratégicos Wilson Centre. Biden vai retomar a luta por melhor governança. Embaixadores americanos farão pressão sobre governos para nomear juízes e funcionários honestos. O governo Biden deverá propor o estabelecimento de uma agência anticorrupção que dê conta de toda a América Central, que apoiaria promotores e procuradores-gerais, mas que seja menos invasiva do que a Cicig e a Maccih. Uma lição da bem-sucedida política de intimidação de Trump a respeito da migração é que os EUA têm grande poder de barganha na região. A abordagem de Biden em relação à tríade da tirania será menos punitiva, dando aos países menos desculpas para o desgoverno. Como Trump, ele considera o venezuelano Nicolás Maduro um tirano. Mas ele tende a ser menos ameaçador, trabalhar mais com outros poderes e buscar maneiras de aliviar a crise humanitária.

Nicolás Maduro participa de comício no centro de Caracas Foto: Prensa Miraflores/EFE

Antony Blinken, o indicado de Biden para secretário de Estado, ajudou a normalizar as relações com Cuba quando foi conselheiro de Obama. Biden vai renovar essa política cautelosamente, aliviando restrições relativas a remessas de dinheiro e turismo. A decisão do governo Trump desta semana de recolocar Cuba na lista dos países que patrocinam o terrorismo, juntamente com Irã, Síria e Coreia do Norte, eleva os custos políticos da reaproximação. Obama retirou Cuba dessa lista em 2015. As mudanças climáticas serão uma nova fonte de rancor. López Obrador, que defende o monopólio estatal sobre o petróleo no México e rejeitou projetos americanos de energia renovável, enfrentará a pressão verde de Washington. Assim como Bolsonaro, que permitiu a aceleração da destruição da Floresta Amazônica. Biden pretende criar um fundo de US$ 20 bilhões para proteger a Amazônia, mas o Brasil, que interpreta iniciativas do tipo como afrontas à sua soberania, até agora tem rejeitado a ideia. As relações entre Biden e Bolsonaro, que louva o regime que torturou Rousseff, deverão ser difíceis.

Brasil se comprometeu em reduzir o desmatamento ilegal até 2030. Foto: Gabriela Biló/Estadão

Para Bolsonaro e alguns outros líderes da região, a mudança de rumo em Washington deve causar um solavanco. Alguns dirão que os EUA não estão em posição, hoje em dia, de repreender outros países. Mas, afirma um conselheiro de Biden, o fracasso dos ataques contra a democracia americana demonstram o valor de instituições fortes. Se os EUA são capazes de superar esse ataques, também poderão ser capazes de ajudar seus vizinhos a fazer o mesmo. / TRADUÇÃO AUGUSTO CALIL

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