The Economist: Mudança na Defesa dos EUA soa alerta para o mundo

Os três membros do governo de Donald Trump que ajudavam a manter o país afastado do caos deixaram os cargos, e suas saídas podem representar uma ameaça para a segurança nacional americana

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Por The Economist
Atualização:

Bob Corker, o ex-presidente do Comitê de Relações Exteriores do Senado, disse em outubro de 2017 que três membros do governo  do presidente dos Estados UnidosDonald Trump “ajudam a manter nosso país afastado do caos”: o secretário de Estado Rex Tillerson; John Kelly, o chefe de gabinete da Casa Branca; e James Mattis, o secretário de Defesa. Trump demitiu Tillerson em março.

James Mattis disse que os EUA enviarão mais 3 mil soldados ao Afeganistão para ajudar a treinar as forças de segurança afegãs que combatem os taleban e outros grupos militantes Foto: AP Photo/Rahmat Gul

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Kelly, cujo esforço para acabar com o caos da Casa Branca de Trump não foi bem sucedido, recebeu suas ordens para se retirar no início deste mês. No dia 20 de dezembro, foi anunciado que Mattis, o único membro do gabinete de Trump que havia estabelecido muito comedimento ao presidente, também estava fora. Em um tuíte, Trump anunciou sua partida como uma aposentadoria. Mas, como Mattis deixou claro em uma devastadora observação sobre a visão de mundo do presidente, ele renunciou por uma questão de princípios.

Parece que o gatilho foi a decisão impulsiva e amplamente condenada de Trump no dia anterior, de anunciar a retirada de 2.000 soldados americanos da Síria. Informou-se que Mattis teria visitado a Casa Branca, com sua carta de demissão no bolso, em uma última e inútil tentativa de afastar Trump de uma medida que ameaça deixar inacabada a campanha americana para esmagar o Estado Islâmico (EI) e Vladimir Putin com maior influência sobre a Síria do que ele já tem. No entanto, Mattis, que se tornou o primeiro secretário de Defesa a renunciar como um ato de protesto, apresentou sua renúncia como uma repreensão mais ampla aos instintos unilateralistas de Trump.

“Uma crença básica que sempre mantive”, escreveu ele, em uma carta distribuída como confete no Pentágono, “é que nossa força como nação está ligada de maneira indissolúvel à força de nosso sistema único e abrangente de alianças e parcerias”.

Um fuzileiro naval aposentado e general de quatro estrelas, cuja reputação exemplar ficou singularmente ilesa a serviço de Trump, Mattis elogiou a Otan em particular. Ele também enalteceu a coalizão de 74 nações que trabalham para derrotar o EI na Síria, que segundo o noticiado, Trump decidiu enfraquecer, sem se preocupar em notificar os líderes de outros países membros - ou mesmo Joseph Dunford, presidente do Estado-Maior Conjunto dos EUA.

A carta de Mattis sinalizou a natureza fundamentalmente autodestrutiva de tal comportamento presidencial impulsivo. “Como você, eu disse desde o início que as forças armadas dos Estados Unidos não deveriam ser a polícia do mundo”, escreveu ele. Como a sustentação do poder global norte-americano, as alianças dos Estados Unidos oferecem uma alternativa historicamente testada para esse papel inacessível e insustentável. Atropelá-lo, como Trump fez, condenando a Otan e outras pedras angulares da aliança ocidental e insultando seus líderes, é, portanto, diretamente contra o interesse da América.

Para sinalizar ao mesmo tempo uma postura militar americana mais isolacionista - ao se retirar da Síria e também, como se soube em 20 de dezembro, planeja-se retirar metade dos 14.000 soldados americanos no Afeganistão – complementa-se o erro estratégico de Trump. Representa, ressalta Mattis, mais do que uma diferença de perspectiva entre ele e o presidente. Isso ilustra a incoerência da noção de Estados Unidos em Primeiro Lugar, de Trump. A liderança global dos EUA, incluindo as alianças nas quais se baseia, é uma fonte de força nacional. Entregá-las fará a América mais fraca.

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Os principais beneficiários do curso autodestrutivo de Trump, disse Mattis, serão, portanto, os principais adversários do domínio americano. “Da mesma forma”, escreveu ele, “acredito que devemos ser firmes e inequívocos em nossa abordagem aos países cujos interesses estratégicos estão cada vez mais em tensão com os nossos. É claro que a China e a Rússia, por exemplo, querem moldar um mundo consistente com seu modelo autoritário - obter poder de veto sobre as decisões econômicas, diplomáticas e de segurança de outras nações - para promover seus próprios interesses às custas de seus vizinhos, dos Estados Unidos e de nossos aliados”.

Isso apontava para outra grande contradição entre os instintos de Trump e o interesse dos Estados Unidos. A principal inovação da própria Estratégia de Segurança Nacional de Trump e da Estratégia Nacional de Defesa relacionada foi identificar esses países mais problemáticos e declarar a necessidade de uma postura americana mais antagônica em resposta a eles. “A competição estratégica entre nações, e não o terrorismo, é agora a principal preocupação na segurança nacional dos EUA", escreveu Mattis em um prefácio do NDS, publicado em janeiro.

Seria ingênuo dar muito crédito ao presidente por esse desenvolvimento estratégico. Representou mais um esforço de Mattis e de outros membros sensatos de sua equipe de segurança nacional para falar com Trump sobre o America First de uma maneira coerente que atendesse às necessidades dos Estados Unidos. No entanto, a partir de suas origens feitas a partir de remendos, a mudança estratégica prometida recebeu forte apoio bilateral (não obstante a repreensão aos instintos mais diplomáticos de Barack Obama que isso implicava).

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Também houve flashes subsequentes de evidências - por exemplo, um discurso surpreendentemente agressivo sobre a China pelo vice-presidente Mike Pence em outubro - de que a administração leva a sério a execução de sua mudança prometida. Enquanto isso, Trump emergiu como provavelmente o maior risco para sua própria estratégia. Mesmo tendo criticado os aliados da América, ele elogiou Putin e o presidente da China, Xi Jinping. Parece que o seu “modelo de autoritarismo” - a ameaça à democracia ocidental, que foi motivo de alerta de Mattis – é algo que Trump admira.

Mattis é o quarto membro do gabinete de Trump a se demitir nos dois últimos meses. No entanto, sua partida é de longe a acusação mais prejudicial do governo já feita. “Porque você tem o direito de ter um secretário de Defesa cujas opiniões estão melhor alinhadas com as suas nestes e em outros assuntos”, escreveu ele, “eu acredito que é certo que eu deixe meu cargo”. Para dar tempo que seu sucessor seja nomeado e aprovado pelo Senado, ele pretende deixar o cargo até o final de fevereiro.

O temor de uma ofensiva da Turquia contra os curdos foi confirmado nesta sexta pelo presidente Recep Tayyip Erdogan Foto: Arif Akdogan / Bloomberg

Julgado pelos padrões que ele próprio estabeleceu, o mandato de dois anos de Mattis no Pentágono foi, na melhor das hipóteses, um sucesso parcial. Ele identificou três objetivos principais: melhorar a letalidade e a prontidão das forças americanas; expandir e aprofundar alianças americanas; e reformar o desperdício de suprimentos e outros processos do departamento de Defesa. Somente o primeiro pode -se dizer que foi significativamente cumprido.

Com o benefício de um grande aumento nos gastos com defesa este ano, Mattis supervisionou melhorias na prontidão e fornecimento de munição e também um afrouxamento das normas de recrutamento das forças dos EUA no Afeganistão e em outras zonas de combate. Sua ambição de melhorar as alianças - uma declaração inicial de sua visão do interesse global dos Estados Unidos – fracassou ante a visão contrária de Trump. Sua agenda de reformas, que muitos secretários de Defesa prometeram e poucos cumpriram, parece similarmente ainda natimorta.

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Para seus muitos partidários, incluindo aliados americanos e a maioria dos membros do Congresso, de ambos os partidos, não obstante, era suficiente que Mattis representasse uma validação dos piores instintos do presidente.

Ele não criticou Trump abertamente. Um ex-confidente de Mattis diz que a recente representação dele, por Bob Woodward, ridicularizando o presidente como “aluno do quinto ou sexto ano” não é verdade. No entanto, em vez de jantares de fast food na Casa Branca, Mattis se esforçou para informar Trump sobre o verdadeiro estado do mundo e, portanto, a inadequação dos instintos de política externa do presidente. Na ocasião, como quando Mattis tentou desacelerar a proibição de Trump contra os homens e mulheres transgêneros, ele também tentou frustrar as ordens do presidente. Sua renúncia mostra como isso era insustentável.

Trump há muito se cansara da falta de entusiasmo de Mattis por suas decisões. Ele também se diz ressentido pela reputação do ex-general como salvador da república. Uma vez apaixonado pela imagem Mattis como um ousado combatente, ele recentemente sugeriu que ele era “uma espécie de democrata”. Não há insulto maior no léxico de Trump.

A renúncia de Mattis deve servir como sinal de alarme para o Congresso. Quase universalmente admirado como um guardião da segurança americana, ele identificou os piores instintos de Trump como uma ameaça àquela segurança, que ele não poderia mais adiar.

Ressaltando a seriedade desta situação, é relatado que Trump tomou suas decisões de se retirar da Síria e parcialmente do Afeganistão, pelo menos em parte, em uma tentativa de desviar a atenção de seus problemas políticos mais amplos. Estes incluem várias ameaças legais, incluindo a investigação de Robert Mueller sobre os assuntos dele e de seus associados, e também seu fracasso, até agora, para garantir o financiamento de um muro de fronteira ao sul.

Sempre ficou claro que a política externa americana estava em risco pelas falhas de caráter de Trump e sua limitada compreensão. Está começando a parecer uma manifestação disso.

A resposta dos senadores republicanos sugere que a gravidade da advertência de Mattis foi de certa forma registrada. O líder republicano do Senado, Mitch McConnell, que geralmente se abstém de qualquer coisa que possa parecer uma crítica ao presidente, disse estar “angustiado” com a saída de Mattis. “É lamentável que o presidente agora precise escolher um novo secretário de Defesa.”

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Trump deveria considerar isso como uma advertência de que a aprovação do Senado para seu próximo secretário de Defesa não será fácil. O indicado não pode ser outro apologista beligerante de Trump, como John Bolton, seu conselheiro de segurança nacional. Informantes do Pentágono sugerem que o vice de Mattis, Patrick Shanahan, pode conseguir o cargo. No entanto, outros republicanos foram mais longe em ecoar o aviso de Mattis.

Mitt Romney, o candidato presidencial do partido em 2012, tuitou: “A política externa descrita pelo general Mattis hoje, por quase três quartos de século, nos impediu de guerrear globalmente, fortaleceu nossa economia, ajudou bilhões a escapar da pobreza e abriu a porta da liberdade ao redor do mundo. mundo. Seu serviço, visão e caráter foram uma bênção. Ele fará muita falta.”

Outros irão seguir o exemplo. Muitos republicanos acreditam que Romney, um senador recém-eleito por Utah, tem a estatura e a mentalidade independente necessárias para resistir ao bullying de Trump, como poucos tiveram. No entanto, o que essa resistência pode significar, à medida que o governo Trump entra em mais uma nova fase preocupante, está aberto a importantes dúvidas.

A implicação velada na declaração de renúncia de Mattis é que os impulsos do presidente são uma ameaça aos interesses de segurança dos EUA. No entanto, a presidência tem amplos poderes sobre a política de segurança nacional. Talvez apenas a remoção de Trump, pelo eleitorado ou de outra forma, pudesse mitigar substancialmente a ameaça sobre a qual Mattis emitiu um alerta.Tradução de Claudia Bozzo © 2018 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM

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