O Taleban invadiu Cabul e tomou o poder no Afeganistão. A cada vitória, líderes do vizinho Paquistão são cobrados cada vez mais.
Por décadas, o Paquistão serviu como refúgio para o Taleban afegão, que com frequência e facilidade cruzou a acidentada fronteira de mais de 2,6 mil quilômetros para o território paquistanês sempre que viu necessário. Autoridades reconhecem que combatentes do Taleban mantêm lares e famílias no Paquistão, a uma distância segura dos campos de batalha.
Agora que os militares americanos declararam encerrada sua participação na guerra afegã, quando parece cada vez mais que o Taleban conseguirá reconquistar o país, Washington está pressionando o Paquistão para chegar a um acordo negociado.
Enquanto manifesta para a comunidade internacional apoio a uma solução pacífica, porém, o governo do primeiro-ministro paquistanês, Imran Khan, está mais silencioso dentro de casa — não demonstrou nenhuma oposição a manifestações pró-Taleban em seu país, nem condenou atrocidades atribuídas ao grupo durante sua marcha a Cabul.
A razão: um grande número de paquistaneses, incluindo comandantes militares, descrevem a vitória do Taleban como algo inevitável. Alguns, incluindo ex-oficiais, torcem publicamente por isso.
Mas a queda do governo do Afeganistão também ocasionaria riscos para o Paquistão, incluindo uma possível onda de refugiados e um impulso aos movimentos jihadistas que têm o governo paquistanês como alvo de seus ataques.
“O Paquistão está realmente amarrado”, afirmou Elizabeth Threlkeld, especialista no Sul da Ásia do Stimson Center, em Washington. “Apesar de o Paquistão se preocupar bastante com o transbordamento da violência e o fluxo de refugiados, quer manter o Taleban ao seu lado.”
Em entrevista ao The New York Times, em junho, Khan afirmou que o Paquistão usou “o máximo de sua influência sobre o Taleban”.
Autoridades paquistanesas negam ter ajudado militarmente o grupo, insistindo que, durante negociações em Doha, no Catar, pressionaram fortemente por conversas de paz com o Taleban. Publicamente, os paquistaneses ecoaram a linha adotada pelos EUA e outros atores em relação ao acordo alcançado em Doha, alertando que o Afeganistão se tornaria um Estado-pária se o Taleban o conquistasse à força.
Mas o Paquistão detém um nível de influência que não está exercendo, afirmam no exterior autoridades paquistanesas. O governo ainda permite que líderes talebans se movimentem livremente através das fronteira do país, que continua a servir como um porto-seguro onde combatentes e suas famílias conseguem assistência médica, afirmam as autoridades paquistanesas.
Alguns críticos, particularmente no Afeganistão, acusam o Paquistão de apoiar ativamente a ofensiva do Taleban, afirmando que os insurgentes não conseguiriam ter organizado esse enorme esforço militar sem ajuda. Nas redes sociais, a campanha com a hashtag#SanctionPakistan (sancionem o Paquistão) tem ganhado popularidade dentro do Afeganistão e entre a diáspora afegã.
Autoridades em Islamabad, a capital do Paquistão, afastam a ideia de que sejam capazes de influenciar o Taleban. Mas o secretário de Estado americano, Antony J. Blinken, afirmou durante viagem à Índia, no mês passado, que o Paquistão deve “fazer tudo o que puder para garantir que o Taleban não tome o Afeganistão à força”.
O representante especial dos EUA para a reconciliação no Afeganistão, Zalmay Khalizad, afirmou este mês que o Paquistão tem uma responsabilidade especial sobre o tema em razão da quantidade de líderes talebans que residem dentro de suas fronteiras — e que o país seria “julgado internacionalmente” a respeito de ter ou não feito tudo o que pôde para promover um acordo político.
A tolerância do Paquistão a respeito do Taleban cobrou seu preço diplomático. O arquirrival do país, a Índia, que atualmente ocupa a presidência do Conselho de Segurança das Nações Unidas e também busca exercer influência sobre o Afeganistão, afirma que apoio logístico, técnico e financeiro ao Taleban continua a emanar o Paquistão. O presidente do Afeganistão, Ashraf Ghani, afirmou em uma conferência em Tashkent, no Uzbequistão, que 10 mil jihadistas atravessaram a fronteira afegã a partir do Paquistão para se juntar à ofensiva — o que o primeiro-ministro paquistanês negou com convicção.
Reservadamente, porém, autoridades paquistanesas afirmam que têm pouco poder para impedir afegãos que vivem no Paquistão de cruzar a fronteira para lutar ao lado do Taleban.
Líderes do Paquistão também podem estar apreensivos em relação ao impacto que uma vitória do Taleban poderia ter sobre a insurgência em seu país. O Taleban paquistanês, ou TTP, um grupo terrorista proscrito, realizou centenas de atentados contra forças de segurança e civis paquistaneses, incluindo um ataque contra uma escola em 2014 que deixou pelo menos 145 mortos, em sua maioria crianças.
Até o ano passado, o TTP parecia estar arruinado. Vários de seus líderes foram mortos por ataques de drones dos EUA. O grupo sofreu uma cisão interna. Um cerco sistemático das autoridades paquistanesas empurrou o grupo para o Afeganistão.
Somente no mês passado, porém, o TTP assumiu a autoria de pelo menos 26 atentados terroristas no Paquistão. Na quinta-feira, o governo paquistanês acusou o grupo de estar por trás de uma explosão em uma usina hidroelétrica que matou nove trabalhadores chineses e outros quatro funcionários, em julho, uma acusação que TTP nega. O líder do grupo, o mufti Noor Wali, descreveu a vitória do Taleban afegão como uma vitória de todos os muçulmanos.
“Os recentes avanços do Taleban no Afeganistão sem dúvida levantaram a moral do TTP e aumentaram a força do grupo”, afirmou Aftab Khan Sherpao, ex-ministro do Interior paquistanês que sobreviveu a três atentados suicidas do TTP.
“Isso é só o começo”, afirmou ele. “Haverá um aumento nos atentados terroristas e isso estará ligado ao avanço do Taleban no Afeganistão.”
Alguns ex-integrantes das forças armadas paquistanesas não escondem seu apoio ao Taleban afegão.
Ghulam Mustafa, um tenente-general reformado e analista militar, descreveu recentemente a insurgência do Taleban como “uma luta de proporções épicas”, que resultará na “destruição do modo de vida do chamado ‘mundo livre’”.
Shafaat Shah, outro ex-tenente-general, afirmou ser favorável à “célere justiça” do Taleban, em comparação ao moroso Judiciário paquistanês.
Essas palavras podem não refletir as visões dos líderes mais graduados do Paquistão, mas sugerem que a posição do Taleban no país se fortaleceu.
“Não considero que a euforia demonstrada por alguns ex-comandantes militares reflita uma inclinação das forças armadas enquanto instituição que apoia o Taleban”, afirmou o ex-diplomata paquistanês Asif Durrani.
“Contudo, também é verdadeiro que o Taleban provou sua valentia e emergiu como um formidável ator, devidamente reconhecido pelos países vizinhos e outros importantes governos, incluindo Washington”.
A situação afegã complicou novamente a relação entre Paquistão e EUA. Moeed Yusuf, conselheiro de segurança nacional paquistanês, e o tenente-general Faiz Hameed, diretor de inteligência, visitaram Washington recentemente para discutir a conjuntura do Afeganistão. O Paquistão declarou que não permitirá aos americanos usar bases no país para nenhum tipo de ação militar contra o Taleban.
“A relação Paquistão-EUA está passando por uma fase complicada”, afirmou Durrani.
Mas, segundo Elizabeth Threlkeld, do Stimson Center, o Paquistão pode estar disposto a aceitar o opróbrio da comunidade internacional, como também o agravamento da violência e aumento de refugiados em troca de uma maior influência em Cabul.
Uma posição mais cordial com relação ao Taleban também aumentará a popularidade de Khan em seu país. Muitas pessoas no Paquistão consideram os militantes do Taleban defensores do islamismo que estão derrotando os intrusos estrangeiros.
Quando o Taleban capturou o estratégico posto de fronteira de Spin Boldak, no mês passado, islamitas e estudantes realizaram uma enorme concentração comemorativa na cidade paquistanesa de Quetta.
Nas mesquitas ao longo da fronteira, muitas delas frequentadas por famílias afegãs que fugiram para o Paquistão, os pregadores pediram aos fiéis para orarem pelos combatentes do Taleban e doarem dinheiro para a sua causa. Autoridades afegãs afirmam que o grupo encontra uma rica base de recrutamento nessas mesquitas e nas escolas religiosas do Paquistão, o que é negado pelas lideranças paquistanesas.
Alguns parlamentares pequineses consideram o Taleban um aliado útil contra a ameaça de potências estrangeiras e também do terrorismo local. Segundo as autoridades, "elementos anti-Paquistão” estão financiando pelo menos duas dezenas de milícias que operam ao longo da fronteira.
“O Taleban está assumindo o papel de muro de proteção para o Paquistão”, disse Mufti Abdul Shakoor, membro do Partido Islâmico, no Parlamento no mês passado.
A última vez que o Taleban governou o Afeganistão, de 1996 a 2001, dezenas de milhares de refugiados fugiram para o Paquistão. Prevendo agora uma tomada do poder pelo Taleban, as autoridades paquistanesas erigiram cercas ao longo dos 2.400 quilômetros da fronteira que separa os dois países.
Mas essa fronteira continua frágil – para os que pretendem se juntar ao Taleban, mas não para os que querem fugir dele.
Khan Nazar, refugiado afegão em Karachi, disse que a família do seu irmão, de sete pessoas, fugiu de Kunduz quando o grupo assumiu o controle da principal entrada da cidade, no final de julho. “Desta vez, ao que parece será difícil para eles atravessarem a fronteira”, disse Nazar.
Temor de outros vizinhos
Durante grande parte dos últimos 20 anos de conflito e envolvimento militar da OTAN, os vizinhos do Afeganistão evitavam o país ou se intrometiam na busca de seus próprios interesses. Mas agora, com a tomada total por um grupo islâmico radical com uma reputação de maus feitos, os vizinhos do país começam a temer.
“Todos os vizinhos do Afeganistão já aceitaram a tomada do poder do Taleban”, disse à Economist Umer Karim, do Royal United Services Institute, um centro de estudos em Londres. “O problema é que, embora poucos na região gostem de ter o Taleban agindo, eles não conseguem chegar a um acordo sobre o que fazer a respeito. Em vez disso, cada um dos vizinhos está se posicionando cuidadosamente para tirar vantagem da situação”.
Além do Paquistão, o Irã compartilha outra longa fronteira com o Afeganistão, tem uma relação mais tortuosa com o Taleban. Seus líderes gostaram de ver a derrota dos Estados Unidos. Mas, como muçulmanos xiitas que veem sua própria revolução islâmica como um movimento modernizador - as mulheres podem estudar, trabalhar e ocupar cargos no Irã, desde que usem o véu - eles olham com desconfiança para o fanatismo sunita do Taleban.
Atolado por décadas com refugiados carentes e heroína barata do Afeganistão, o Irã também está preocupado com um novo influxo, particularmente de hazaras, uma minoria étnica xiita que o Taleban perseguiu cruelmente no passado. Com pouca influência sobre o Taleban, o Irã provavelmente dará apoio às milícias afegãs locais na região da fronteira, que recentemente repeliram um ataque do Taleban à cidade de Herat.
Outros três vizinhos menores da Ásia Central, Tajiquistão, Usbequistão e Turcomenistão, estão na pior situação. Radicais islâmicos de todas as três ex-repúblicas soviéticas se refugiaram no Afeganistão. Com toda a fronteira agora nas mãos do Taleban, eles temem que alguns militantes se infiltrem de volta. Todos os três países abraçaram laços militares mais estreitos com a Rússia. Para ressaltar a influência regional renovada e alertar o Taleban, as forças russas empreenderam na semana passada manobras conjuntas em grande escala com tropas tadjiques e uzbeques ao longo de suas fronteiras afegãs./ Tradução de Augusto Calil