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Trégua para Da Vinci

Itália e França, que andam trocando insultos, comemorarão os 500 anos da morte do mestre

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Por Gilles Lapouge
Atualização:

Emmanuel Macron gosta de cerimônias grandiosas. Quando recebe um “grande” do mundo, ele não mede esforços para agradar e leva o visitante a algum dos ícones da história da França, como o Castelo de Versalhes, as Tulherias, o Louvre. É por isso que ele se entusiasmou com os 500 anos da morte de Leonardo da Vinci, um gênio universal nascido na Itália, mas que passou seus últimos anos na França a convite do rei Francisco I

O presidente francês Emmanuel Macron discursa em evento na cidade deGrand-Bourgtheroulde, na Normandia. Foto: Ludovic MARIN / AFP

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É uma bela ocasião para celebrar a amizade franco-italiana, mesmo que essa amizade tenha sido abalada por algumas brechas. Primeiro foram as guerras cruéis travadas na Itália durante meio século pelos reis da França, na Renascença. Depois, foi na 2.ª Guerra: Mussolini, aliado de Hitler, não hesitou em lançar seus soldados contra a França quando ela já estava meio consumida pelos nazistas. Mas nada disso impediu que franceses e italianos continuassem a glorificar, com vozes embargadas, “a indefectível amizade entre os dois irmãos latinos”. Acima de tudo, uma verdadeira amizade se fundamenta em memórias comuns. 

Neste ano, houve entre Itália e França uma troca de injúrias, a ponto de Paris chamar para consultas seu embaixador em Roma. Sabemos que a Itália tem há alguns meses um governo de direita, formado pelos neofascistas da Liga e os populistas do Movimento 5 Estrelas. A atual discórdia nasceu em torno da migração. Matteo Salvini, o vigoroso ministro italiano do Interior, repreendeu a França por deixar a “irmã italiana” se virar sozinha com os barcos de migrantes que chegavam ao sul da Itália. Mas Salvini tinha razão. A Europa, encastelada em seu egoísmo, deixou a Itália sozinha com esse enorme fardo. 

Por seu lado, a França criticou duramente Salvini por fechar, no último verão, todos os portos italianos aos barcos carregados de migrantes vindos da Ásia ou da África. Como não compreender também os lamentos da França? 

Entre outros insultos, proferidos após a França chamar seu embaixador, destacou-se esse de Salvini: “Macron é um incapaz”. A subsecretária italiana da Cultura, Lucia Borgonzoni, lembrou, por sua vez, que a Mona Lisa, o quadro mítico de Leonardo da Vinci, orgulho do museu francês do Louvre, foi pintada por um italiano, mesmo que esse italiano tenha morrido na França.

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Em 3 de fevereiro, houve nova provocação dos italianos. Um vice-ministro italiano, Di Stefanio, foi ao Castelo de Chambord, monumento que Leonardo conhecia bem porque imaginou e desenhou a esplêndida escadaria que embeleza o castelo. E o que fez na visita a Chambord esse notável italiano? Ele simplesmente reiterou o apoio italiano aos coletes amarelos, os proletários enfurecidos que todo sábado, há meses, desafiam as autoridades sufocando com seus gritos as grandes cidades francesas. Macron ficou indignado. 

Dias antes, Salvini havia apelado para a artilharia pesada. “Macron tem a síndrome do pênis pequeno”, fustigou ele, resumindo todos os problemas às dimensões do pênis presidencial. Como ninguém no Palácio do Eliseu se permitirá verificar essa informação, o povo francês está condenado a uma eterna dúvida.

Em seguida, começou uma enorme “operação abafa” para afastar as nuvens no dia dos 500 anos da morte de Leonardo. A diplomacia francesa jogou todo seu charme para trazer as coisas de volta aos trilhos. Para a cerimônia que coroou as celebrações, Paris convidou o presidente italiano, Sergio Matarella, mais moderado que Salvini e favorável à União Europeia. E, assim, evitou-se uma nova guerra franco-italiana. Mas acesa sob as cinzas está mantida uma dessas querelas sem as quais a amizade não é digna desse belo nome. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

*É CORRESPONDENTE EM PARIS

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