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Trump, o geopolítico 

Decisão de Trump de retirar tropas da Síria pode fazer os jihadistas renascerem 

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Por Gilles Lapouge
Atualização:

Nestes dias, Donald Trump envergou seus trajes de geopolítico. Contradizendo promessas, conselheiros e ministros, e tomando sombrias decisões na surdina, sem anunciá-las a ninguém, ele corre os dedos pelo mapa-múndi. Detém-se no Oriente Médio, região martirizada onde a regra é a confusão.

Ele usa seu gênio para consertar as aventuras levadas sob a bandeira americana há meio século. Primeiro, foi o Vietnã, de onde o Exército mais poderoso do mundo foi expulso por combatentes pobres, armados apenas de coragem e inteligência para defender a pátria ameaçada.

Trump e Kim se encontraram em Panmunjom, cidade da Zona Desmilitarizada (DMZ), em junho de 2019 Foto: Susan Walsh / AP

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Em seguida, os americanos tropeçaram no Afeganistão e no Iraque. Na Síria, o gentil e inteligente Barack Obama capitulou ante Bashar Assad e seus chegados, que cruzaram a linha vermelha das armas químicas, em 2013, e abandonaram seus aliados, começando pela França, de François Hollande.

Hoje, a nova geopolítica americana se contenta em seguir a fraqueza e indecisão dos EUA. Mas Trump faz isso com estardalhaço e comicidade. Em 6 de outubro, ele telefonou a Recep Erdogan, presidente turco, dando carta branca ao Exército turco para entrar na Síria e ocupar Rojava, onde vivem alguns árabes e inúmeros curdos.

A essa permissão, Washington acrescentou: se os curdos resistirem, não terão ajuda. Em outras palavras, chegou o dia tão temido desde o fim do Estado Islâmico, o dia em que os americanos abandonaram os curdos.

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É o presente de casamento que a nova amizade entre Trump e Erdogan recebe. Mas é um presente detestável, pois os curdos foram os aliados mais sólidos dos EUA na guerra contra o jihadismo. Eles conquistaram a admiração do mundo por sua tenacidade em combate e seu heroísmo, principalmente das mulheres, que participaram das batalhas. Foram os curdos que facilitaram a liquidação do EI, com a tomada de Raqqa. Agora, são deixados nas garras de seu pior inimigo, Erdogan.

A Turquia recebeu 5 milhões de refugiados caçados no Oriente Médio, principalmente sírios, que seriam 3 milhões ou 4 milhões. Hoje, Erdogan, deixando de lado qualquer vergonha, ameaça permitir que essa multidão entre na Europa se não receber ajuda considerável. É a volta do pesadelo do qual a Europa só saiu graças ao acordo que Angela Merkel assinou com Erdogan, para que ele retivesse na Turquia essa massa à deriva. 

A França tem motivos para tremer. Ela é muito amiga dos curdos. Mas talvez tenha de abandoná-los – ou as forças francesas serão desarmadas pelos turcos. É um imbróglio que pode se tornar vergonhoso. A França está exposta a outro grande perigo: os curdos detêm talvez 180 mil prisioneiros, muitos do EI.

Eles já disseram que, no caso de ataque turco, não conseguirão garantir a segurança dos campos nos quais esses jihadistas estão confinados. Pode-se imaginar o que ocorrerá se esses elementos – sírios, iraquianos, além de europeus – conseguirem fugir e chegar a seus covis nas florestas e desertos, retomando sua atividade sinistra. 

Na hipótese mais sombria, eles tentariam reconstruir o EI. Mais provavelmente, retomariam o caminho de seus países de origem (entre outros, da Europa) e cometeriam, sob as ordens do EI, atentados com lobos solitários ou pequenos grupos.

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Os cenários são extremamente pessimistas. Pode até ser que Trump tenha sido duramente sacudido por seus generais, especialistas e ministros para retirar seus soldados da região. Mas, em se tratando de Trump, quem sabe? Basta que ele, num surto de insônia, pense em outra estratégia e mude o fuzil de ombro. Aí, todas as análises caducariam. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

*É CORRESPONDENTE EM PARIS

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