Trump passa de vilão 'caquético' para 'supremo líder' na mídia estatal norte-coreana

Desenvolvimentos entre EUA e Coreia do Norte devem definir se presidente americano se manterá como figura de respeito ou voltará a ser inimigo de Pyongyang

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PYONGYANG - Os norte-coreanos vêem um novo Donald Trump após a cúpula entre Coreia do Norte e Estados Unidos. Agora, o presidente americano está longe do rótulo de "caquético", usado pelo regime de Kim Jong-un no ano passado. Antes da reunião em Cingapura, mesmo em um dia bom, o máximo que o governo ou a mídia estatal norte-coreana diziam era apenas "Trump", sem menção ao cargo ou algum sinal de respeito pelo presidente americano. Agora, ele é chamado de "presidente dos Estados Unidos da América", "presidente Donald J. Trump" ou até mesmo "líder supremo", nomenclatura utilizada por Kim.

População norte-coreana lê o jornal estatal, dominado pela cobertura da cúpula entre Estados Unidos e Coreia do Norte, em estação de metrô em Pyongyang. Foto: AP Photo/Dita Alangkara

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A reunião dessa semana mudou completamente a versão oficial da Coreia do Norte, que passou a retratar Trump como uma figura séria, quase monárquica, demonstrando como a narrativa oficial é cuidadosamente construída pelo governo para manter o povo ideologicamente a bordo das grandes mudanças em andamento entre Pyongyang e Washington. Os norte-coreanos foram ensinados, desde a infância, a odiar e desconfiar dos chamados "imperialistas americanos".

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O tempo entre a realização da cúpula e a transmissão dos primeiros vídeos e fotos do evento na Coreia do Norte, na quinta-feira, parece ter sido cuidadosamente escolhido pela televisão estatal. Só dois dias depois é que a população teve acesso às imagens do encontro em Cingapura. Para os norte-coreanos, a estrela foi Kim. A primeira aparição de Trump e o aperto de mãos histórico foram exibidos quase 20 minutos depois do programa, que durou 42 minutos, ter iniciado.

População norte-coreana reunida para acompanhar a transmissão de programa sobre a cúpula entre o líder Kim Jong-un e o presidente Donald Trump, em praça de Pyongyang. Foto: AP Photo/Dita Alangkara

O apresentador do programa, de maneira dramática e quase em tom musical, descreveu Kim como um estadista à frente de seu tempo, confiante, educado, rápido em sorrir e firmemente no controle. Segundo a narrativa do programa, Kim permitiu que Trump, que tem quase o dobro de sua idade, se inclinasse em direção a ele para apertar suas mãos. Antes de mostrar os dois assinando a declaração conjunta, o narrador disse que Trump fez questão que Kim olhasse sua limusine, conhecida pelos americanos como "A Besta". Em determinado ponto, o programa descreveu Trump e Kim como os "dois líderes supremos" de seus países.

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A viagem de Kim a Cingapura foi exibida como um documentário cronológico, começando no tapete vermelho do aeroporto de Pyongyang e no voo fretado da Air China. Em seguida, veio um vídeo de sua carreata em direção ao Hotel St. Regis, em Cingapura, enquanto multidões de simpatizantes acenavam pelas ruas, como se esperassem uma estrela de rock.

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Jornalistas e observadores tiram fotos do líder norte-coreano Kim Jong-un durante sua chegada ao hotel St. Regis, em Cingapura. Foto: REUTERS/Kim Kyung-Hoon

A transmissão da cúpula pela mídia estatal é de extrema importância, porque dá à população norte-coreana, que tem acesso limitado a outras fontes de notícias, uma ideia do que está acontecendo e de como o governo espera que os cidadãos reajam.

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Para a média da população, a cobertura estatal da campanha diplomática neste ano deve parecer surpreendente. Depois de enviar uma delegação de alto escalão para a Olimpíada de Inverno na Coreia do Sul, em fevereiro, Kim se reuniu duas vezes com o presidente sul-coreano, Moon Jae-in, e com o presidente chinês, Xi Jinping. Todas as reuniões foram notícia na mídia estatal, apesar de terem sido divulgadas geralmente com um dia de atraso, para garantir determinado tom ideológico e as imagens mais poderosas.

Mulher norte-coreana mostra seu smartphone com fotos do encontro entre o líder norte-coreano, Kim Jong-un, e o presidente americano, Donald Trump. As imagens foram divulgadas pela mídia estatal norte-coreana na quarta-feira, 13. Foto: Minoru Iwasaki/Kyodo News via AP

No período que antecedeu a cúpula, a mídia norte-coreana suavizou a retórica, para que a atmosfera de preparação para o encontro não fosse estragada. Por anos, os EUA foram apontados como o lugar mais maligno do planeta, ao lado do Japão, antigo governante colonial do território coreano.

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Pyongyang chegou a dar respostas fortes para os comentários do vice-presidente dos EUA, Mike Pence, e do conselheiro nacional de segurança, John Bolton, e se manteve crítica aos "valores capitalistas". No entanto, as referências diretas a Trump foram mínimas. Bolton é alvo da ira do governo norte-coreano desde que serviu durante o governo de Geoge W. Bush, mas no programa de quinta-feira, ele foi apresentado novamente ao público no momento em que apertou a mão de Kim.

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Depois da conclusão do desmonte do programa nuclear, a Coreia do Norte tem a estratégia diplomática como plano principal. Por anos, Pyongyang afirmou que a pressão pela desnuclearização era uma política de hostilidade e "chantagem nuclear" de Washington.

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Norte-coreana lê jornal estatal em estação de metrô, na cidade de Pyongyang. População agora vê um novo Donald Trump, após a cúpula histórica entre Coreia do Norte e Estados Unidos. Foto: AP Photo/Dita Alangkara

Em termos gerais, o programa sobre a cúpula enfatizou que as conversas entre Kim e Trump focaram na construção de um relacionamento mais sintonizado com o que a mídia estatal chamou de "tempos de mudança", algo que provavelmente significa o novo status da Coreia do Norte como Estado dono de armas nucleares, assim como seu desejo por um mecanismo que garanta a paz duradoura na Península Coreana e, finalmente, sua desnuclearização. Apesar do tom respeitoso com Trump, permanece a cautela. Kim continua sendo o herói na narrativa oficial. Se Trump será uma estrela ao seu lado, ou novamente o vilão só se saberá nos próximos episódios. / AP

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