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Trump visto da França

Para ‘Le Monde’, magnata se associa a pessoas em total contradição umas com as outras e sem linha política

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Por Gilles Lapouge , Correspondente e Paris
Atualização:

Donald Trump não seduziu a França e a Europa, como o fez Barack Obama. Primeiro nós o vimos como um bufão, mas, já que ele vai se instalar na Casa Branca, passamos a levá-lo a sério e a tentar saber o que há por trás desse provocador de cabelos ridículos.

Quais são suas aptidões, suas emoções, seus desejos, seus sonhos? Essa é uma busca de longo alcance, pois Trump é complexo, astuto, incontrolável, e seu cérebro não é formatado como o dos políticos europeus. Assim, sem conseguir decifrar as sombras do presidente eleito dos EUA, somos levados a escrutinar no microscópio os homens (são muito poucas as mulheres) dos quais ele vai se cercar.

O presidente eleito dos Estados Unidos em evento em Iowa. Foto: Shannon Stapleton/Reuters

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Também aí, no entanto, continuamos a navegar em incertezas. No jornal Libération, Aude Massiot compara as escolhas de Trump a uma loteria. Para ganhar, é preciso ser homem de negócios, banqueiro ou general e falar duro. Se possível, deve ser bilionário e alinhado com as ideologias dominantes em nosso tempo – ser cético sobre as mudanças climáticas, contra o aborto e contra a seguridade social.

Manchete do Le Monde: “A empresa ultraconservadora de Donald Trump”; Do Libération: “Rex Tillerson, futuro secretário de Estado – uma diplomacia do petróleo”; Le Figaro: “Tillerson, um empresário durão apreciado pelo Kremlin”.

Le Monde assinala que “o candidato do homem comum” cerca-se de bilionários: “O método Trump é desordenado e imprevisível, despreza promessas e associa pessoas em total contradição umas com as outras, sem uma linha política ou visão coerente”.

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Em política externa, no entanto, os analistas acreditam identificar algumas tendências do presidente eleito. Com a China, é de linha-dura e nenhuma empatia. Pequim deve repensar a política de “uma só China” e o relacionamento com Taiwan. Trump envia tuítes furibundos sobre a agressividade comercial chinesa e a militarização do Mar do Sul da China.

Já com a Rússia, é só amabilidades, quase doçura. Trump já havia esboçado isso durante a campanha eleitoral. Confirma agora com a nomeação para o Departamento de Estado do poderoso homem do petróleo (CEO da ExxonMobil) Rex Tillerson, amigo do líder russo Vladimir Putin, o pesadelo das chancelarias ocidentais.

Pode-se imaginar os efeitos dessa amizade com os russos, se ela perdurar: um abrandamento das sanções econômicas (na verdade, inoperantes e ruinosas para o Ocidente), uma releitura do contencioso Crimeia/Ucrânia entre Washington, Bonn, Paris e Moscou e, por último, um novo olhar sobre o combalido Oriente Médio, onde Putin conduz à vontade o jogo – sob os olhares dos Estados Unidos e da Europa, reduzidos à condição de simples espectadores ao mesmo tempo consternados com o massacre de inocentes e constatando a própria nulidade.

A escolha do maior homem do petróleo do mundo para a diplomacia inquieta não apenas os ecologistas, mas todos os que desejam que a Terra continue sendo um planeta feliz e azul, com girafas, anêmonas e neve. Não foi a Exxon que financiou estudos negando o aquecimento global?

Mas aí também aparece a contradição. Tillerson, ex-chefe da Exxon e futuro secretário de Estado, admitiu que o aquecimento global constitui um perigo sério para o futuro da humanidade, a ponto de ter se manifestado em favor do acordo sobre o clima assinado em Paris em dezembro de 2015. Ele até foi a favor de um imposto a ser cobrado sobre as emissões de dióxido de carbono.

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Mas, para se contrapor a essa concessão, na turma de Trump, existem contrapesos: a nomeação de Rick Perry, ex-governador do Texas, para secretário da Energia, e a de Scott Pruitt, do Estado petrolífero de Oklahoma, conhecido cético sobre as mudanças climáticas, para assumir a Agência de Proteção Ambiental.

No artigo que dedicou à nomeação de Tillerson, Le Monde concluiu: “Os eleitores americanos escolheram Donald Trump. O restante do mundo não foi consultado. No entanto, é com esse presidente que o mundo terá de trabalhar. Apertem os cintos!”. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ