Tudo que iraquianos querem é estabilidade

Depois de todo o derramamento de sangue, é um crédito pequeno para os EUA o fato de a população desejar algo que tinha com Saddam

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Por John F. Burns
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Já são cinco anos, e parece surreal. Às 21 horas de 19 de março de 2003 em Bagdá, o primeiro míssil dos EUA atingiu o vasto bunker de comando presidencial que se tornaria, sob a ocupação americana, a Zona Verde. Durante 40 minutos, seguidos de uma pausa, e depois outros 40 minutos, uma saraivada de mísseis e bombas atingiu palácios, complexos militares, edifícios da inteligência, o coração dos anos de tirania assassina de Saddam Hussein. Washington chamou a operação de ''choque e pavor''. Em Bagdá, os iraquianos ansiosos para livrar-se de Saddam a chamaram simplesmente de ''show aéreo''. A sensação predominante - que agora parece surreal à luz do que houve na seqüência - era a de que, com o início do fim dos malefícios de Saddam, o sofrimento de milhões de iraquianos comuns estava terminando. Mas não demorou para os acontecimentos no Iraque, de onde só parti em 2007, começarem a dar motivos para uma reconsideração geral. Em 9 de abril, o dia em que os marines entraram em Bagdá e usaram um tanque para ajudar a multidão a derrubar a estátua de Saddam na Praça Firdos, soldados americanos assistiram passivos enquanto as turbas começaram a saquear e devastar palácios e centros de tortura, além de ministérios, museus e hospitais. Horas depois, no Ministério do Petróleo, descobri que esse era o único prédio que os marines tinham ordens de proteger. Aquele foi o primeiro do que se tornaria uma longa lista de erros: o fracasso em encontrar armas de destruição em massa (o principal motivo apresentado pelo governo Bush para a guerra); a falta de um plano do Pentágono para depois da queda de Bagdá; o desmantelamento do Exército iraquiano, impossibilitando que ele atuasse no combate à insurgência que começou a pipocar dez dias após a queda de Bagdá; a falta de uma estratégia americana eficaz de contra-insurgência - pelo menos até que o reforço militar enviado em 2007 finalmente começasse a reduzir os custos e as baixas da guerra. No quinto aniversário, o pesado ônus do conflito é uma frustração para todos que tenham achado que a destituição de Saddam poderia ter sido feita a um custo aceitável. A guerra e seus argumentos foram reduzidos ao sentimento terrível, familiar a todos que presenciaram um conflito, de que nada, ou quase nada, pode justificar suas feridas. São cenas que não se apagam: ver corpos de soldados americanos sendo enfiados em sacos de plástico para a viagem de volta para casa e saber, nesse instante, que a vida de famílias desconhecidas a milhares de quilômetros de distância foi esfacelada; visitar destroços deixados por atentados, com membros espalhados pela rua, e ouvir os lamentos de desolados iraquianos. Em algum momento, aqueles que desencadearam a guerra prestarão contas à História, assim como reclamarão os créditos se os EUA finalmente encontrarem uma maneira de sair com honra e sem destruir tudo que foram concretizar no Iraque. Mas repórteres também podem querer fazer uma avaliação. Se descrevemos com exatidão os horrores do Iraque de Saddam antes da guerra, devemos reconhecer que fomos menos eficazes, então, em investigar, por baixo da carapaça de terror, outras facetas da cultura e da história do Iraque que teriam um impacto determinante para o projeto americano de construir uma democracia em estilo ocidental. O que parece certo é que as pessoas encarregadas de realizar a missão americana foram confrontadas, desde o início, com a improbabilidade. O Iraque, em 2003, dificilmente poderia estar menos preparado do que estava para abraçar a democracia, com a dependência que esta tem de um mínimo de consenso e confiança popular. A dura realidade é que muitos iraquianos, ao menos na época em que foram realizadas duas eleições em 2005, tinham pouco gosto pela democracia, ao menos como os ocidentais a entendem. Isso também não foi inteiramente compreendido na época. Era inspirador andar pelas ruas de Bagdá nos dias de eleição, especialmente durante a eleição de dezembro que produziu o governo de maioria xiita agora no poder. Com 12 milhões de pessoas votando, um comparecimento de 75%, era natural Bush dizer que os iraquianos tinham adotado a visão americana. Na verdade, o que a maioria produziu foi menos um voto pela democracia que um voto por uma transferência de poder permanente da minoria sunita que governava o Iraque havia séculos a uma maioria xiita impaciente e profundamente ferida, se não totalmente vingativa. O que veio em seguida era previsível. Durante quase dois anos, os partidos religiosos xiitas que venceram a eleição de dezembro de 2005 se aferraram tenazmente a seu recém-conquistado poder, e os partidos sunitas, irreconciliáveis com um Iraque governado por xiitas, manobraram para manter aberta a possibilidade de uma restauração sunita. Em suma, nada foi resolvido. Pesquisas de opinião há muito vêm sugerindo que a maioria dos iraquianos gostaria de que os soldados americanos saíssem do país, mas outra lição tirada dos anos de Saddam é que qualquer tentativa de medir a opinião pública no Iraque é fatalmente distorcida pela intimidação. Por minha experiência pessoal, a maioria esmagadora dos iraquianos que se sentem suficientemente seguros para falar com franqueza tem o desejo de ver as tropas americanas permanecerem por tempo suficiente para restaurar a estabilidade. Seria estranho, depois de anos de incansável derramamento de sangue, se os iraquianos pedissem outra coisa. É um crédito pequeno para a invasão, depois de tudo que ela custou, o fato de os iraquianos chegarem a um ponto em que tudo que querem dos EUA é o retorno a uma coisa, estabilidade, que tinham com Saddam. Essa também é uma perspectiva profundamente desanimadora para os EUA e não promete um fim do derramamento de sangue no Iraque no futuro próximo.

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