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Turquia, a nova normalidade

Campanha republicana à presidência dos EUA revela ignorância sobre um complexo aliado de Obama, um país referência para os regimes que a Primavera Árabe derrubou

Por É JORNALISTA , JACKSON , DIEHL , É JORNALISTA , JACKSON e DIEHL
Atualização:

Seria agradável pensar que a saída de Rick Perry da corrida presidencial do Partido Republicano teve algo a ver com a observação obtusa que ele fez sobre a Turquia no debate em Myrtle Beach, na Carolina do Sul.O diálogo com Bret Baier, da Fox News, é sem dúvidas o ponto mais baixo no tema política externa das primárias republicanas até agora - o que significa muito. Ele chama a atenção também para um problema na compreensão americana - em particular, republicana - da transformação do Oriente Médio que é muito maior que Perry. Baier fez uma descrição basicamente precisa, embora parcial, do governo de Recep Tayyip Erdogan, dizendo que "desde que seu partido orientado para o islamismo chegou ao poder... o índice de assassinatos de mulheres aumentou 1.400%, a liberdade de imprensa caiu ao nível da Rússia, (Erdogan) adotou o Hamas e a Turquia ameaçou usar força militar contra Israel e Chipre". Em seguida, ele perguntou: "Acredita que a Turquia ainda tem lugar na Organização de Tratado do Atlântico Norte (Otan)?" Perry respondeu: "Bem, evidentemente quando se tem um país que está sendo governado pelo que muitos percebem ser terroristas islâmicos..." Terroristas islâmicos? Isso, reparem, é sobre um governo que acaba de instalar um radar avançado em seu território que poderá ser usado para monitorar e abater mísseis do Irã. Que participou da operação da Otan contra Muamar Kadafi na Líbia. Que se tornou hospedeiro da oposição ao ditador sírio, Bashar Assad. E, tendo repetidamente vencido eleições democráticas livres, emendou a Constituição da Turquia para aumentar os direitos de mulheres, minorias étnicas e sindicatos. Ok. Esse também é um relato parcial do currículo de Erdogan. Mas essa é precisamente a questão: a Turquia tornou-se um aliado complexo, dinâmico, difícil, algumas vezes exasperante, outras muito útil e, indiscutivelmente, importante dos EUA. Nesse sentido, o governo de Erdogan é um paradigma das relações que os governos americanos estarão gerindo - se tivermos sorte - no Egito, Iraque e outros lugares no Oriente Médio durante a próxima década. A verdade é que, gostemos ou não, governos "orientados para o islamismo" estão perto de se tornar a normalidade numa região dominada durante décadas por autocratas seculares e generais pró-americanos. Por isso, o preconceito tosco sobre movimentos muçulmanos instalado na visão de muitos conservadores americanos - a de que eles são inevitavelmente fundamentalistas, antidemocráticos, anti-Israel e antiamericanos, se não explicitamente "terroristas" - virou problema grave. Se for levado a sério, ele tornará impossível ao atual governo dos EUA, e a outros futuros, transitar pela nova política da região e preservar alianças cruciais.Alguns movimentos islâmicos poderão se tornar como o Hamas e o Hezbollah - implacavelmente hostis. Outros, porém, como a Irmandade Muçulmana, no Egito, provavelmente enveredarão por um terreno intermediário ambíguo, tentando equilibrar a necessidade de investimento ocidental e as aspirações seculares de suas populações com sua ideologia religiosa. A maneira certa de responder a eles é ser ágil: tolerar alguma turbulência, esquivar-se de alguns golpes, revidar outros e continuar pressionando os líderes a não se afastar dos princípios democráticos. Isso é parecido com a maneira como Barack Obama tem lidado com Erdogan e seu governo - com um resultado líquido que, ao menos por enquanto, parece positivo. Escrevi não faz muito tempo sobre as falhas de Obama em várias iniciativas suas de política externa. Mas a maneira como tratou a Turquia e seu caprichoso líder pode ser classificada como uma de suas melhores realizações. Fortuitamente, Obama começou a cortejar Erdogan desde o início de seu governo, escolhendo Istambul para uma de suas primeiras viagens ao exterior e pronunciando ali um discurso em que prometeu construir relações sólidas entre os EUA e a Turquia, e também com o mundo muçulmano em geral. Seguiram-se algumas grandes decepções. Erdogan indispôs-se com Israel antes mesmo da desastrosa interceptação por comandos israelenses de uma embarcação turca que tentava furar o bloqueio a Gaza em 2010. Ele tentou barrar, e depois votou contra, a tentativa de Obama de aprovar no Conselho de Segurança da ONU sanções contra o Irã. Em casa, seus ataques a jornalistas críticos e a prisão de centenas de militares e ativistas seculares com base em acusações dúbias de conspiração provocaram críticas públicas do embaixador americano e, por fim, da secretária de Estado americana, Hillary Clinton. Obama, entretanto, continuou trabalhando com o líder turco, telefonando para ele mais vezes do que para qualquer outro aliado estrangeiro, com a exceção de David Cameron da Grã-Bretanha. O resultado foi uma relação pessoal relativamente estreita. Questionado sobre suas relações externas numa entrevista na semana passada, Obama citou Erdogan entre os cinco líderes mundiais com os quais havia forjado "laços de confiança".Dirigentes do governo dizem que houve uma convergência entre as políticas americana e turca no ano passado - sobre Líbia, Síria, Irã e Primavera Árabe em geral. Apesar de a tendência de Erdogan para uma autocracia doméstica continuar sendo uma grande preocupação, algumas autoridades americanas acreditam que a nova Constituição que seu partido está elaborando resultará em uma melhor distribuição de poderes e menos jornalistas na prisão. Isso não fará da Turquia um aliado ideal ou corrigirá suas relações ainda problemáticas com Israel. Mas é muito melhor do que transformar islâmicos em adversários - ou não distingui-los de terroristas. / TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIK

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