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Um ano depois de terremoto, mais de 1 milhão de haitianos ainda vivem em barracas

Moradores reclamam de falta de perspectivas, assistência e emprego em Porto Príncipe.

Por Alessandra Corrêa
Atualização:

Sentada em frente à barraca que divide com o marido e os dois filhos na favela de Cité Soleil, em Porto Príncipe, a haitiana Clara Morézile, 19 anos, espera o sol baixar. "Ele não aguenta o calor dentro da lona e começa a chorar", diz, enquanto segura no colo o filho mais novo, Weindi, de um mês de idade. "Tenho que sair e esperar até refrescar." Clara diz que quando ficou grávida, logo após o terremoto de 12 de janeiro de 2010, não imaginava que, um ano depois, ainda estaria vivendo em um acampamento de desabrigados. No entanto, assim como mais de 1 milhão de haitianos que tiveram suas casas destruídas no desastre, ela segue morando em uma tenda e não vê perspectivas de mudança. Morézile diz que há um ano não imaginava que continuaria na barraca O terremoto destruiu a já precária infra-estrutura do país e deixou cerca de 230 mil mortos. Apesar da comoção internacional logo após a tragédia, o governo haitiano reclama que pouco do dinheiro prometido chegou ao país, e as ruas da capital seguem tomadas por barracas. Segundo dados da missão da ONU no país (Minustah), ainda há cerca de 1.300 acampamentos para desabrigados pelo terremoto, com um total de 1,2 milhão de pessoas. Logo após o tremor, a Minustah havia estimado em 1,5 milhão o total de desabrigados. Segundo relatório da Organização Não Governamental internacional Oxfam, apenas 15% das moradias permanentes ou temporárias necessárias para abrigar esse contingente foi concluído. Um grupo de países doadores, entre eles o Brasil, estabeleceu em março passado um fundo internacional com um caixa de US$ 5,3 bilhões, a serem gastos até o final de 2011. O governo haitiano calcula que a reconstrução do país, no longo prazo, deverá custar US$ 11,5 bilhões. Serviços Muitos moradores reclamam das valas a céu aberto nos acampamentos As tendas estão por todos os lados, inclusive no centro da cidade, em frente ao palácio presidencial, que permanece em ruínas, como um símbolo da tragédia. Segundo moradores e líderes comunitários, em vez de diminuir, a população dos acampamentos têm aumentado. Sem poder pagar os altos preços dos aluguéis, que triplicaram depois que o terremoto destruiu a maioria das casas da cidade, mais e mais haitianos acabam obrigados a viver em tendas. Assim como na maioria dos acampamentos surgidos após o terremoto, as barracas em Cité Soleil foram erguidas aos poucos, sem planejamento, e os moradores reclamam da falta de serviços básicos. Clara conta que quando chegou a hora de seu filho nascer, teve de ser carregada nos braços pela mãe e uma vizinha até o hospital mais próximo. "É difícil. Não recebemos nenhum serviço de saúde", diz. As ruelas entre as barracas estão tomadas por lixo. Não há eletricidade, e nem sempre há água potável. Nem todos os moradores usam os banheiros químicos instalados no acampamento, e muitos depositam os dejetos em valas a céu aberto. Sem ajuda Estima diz que ela e os filhos passam fome, sem dinheiro para comida Na barraca vizinha à de Clara, Filomène Estima, 30 anos, reclama da falta de dinheiro para alimentar os quatro filhos, o irmão e a irmã, cega. "Não recebo ajuda de ninguém. Se consigo dinheiro, as crianças têm o que comer. Nos dias que não consigo, ficam sem nada", diz. O marido de Filomène morreu no terremoto. "Uma casa caiu sobre ele." O apartamento alugado em que viviam foi destruído. Ela diz que tinha um pequeno comércio, mas não conseguiu mais trabalho depois do terremoto. No mês passado, o filho mais novo, de cinco anos, teve cólera, doença que já matou mais de 3 mil haitianos desde outubro. O menino se recuperou, mas Filomène ainda tem medo. "As pessoas têm medo, principalmente se vivem em um lugar infestado de doenças como este", afirma. "Quando vim para cá, não imaginava que ficaria tanto tempo. Achava que, depois de um ano, já estaria de volta a uma casa normal. Mas continuo aqui", diz. Abandono Pierre Feldqui fundou uma associação de moradores para obter mudanças Ao norte de Porto Príncipe, o acampamento de Jerusalém é o retrato do abandono em que vivem boa parte dos desabrigados. "Ninguém olha para nós", diz Pierre Fedqui, 31 anos, que há cinco meses se uniu a outros moradores para formar uma associação comunitária. Jerusalém é um dos diversos acampamentos irregulares surgidos após o terremoto, para o qual os desabrigados se mudaram por conta própria, e assim, não recebem ajuda do governo. O abandono fica ainda mais visível quando se compara a situação em Jerusalém com a do acampamento em frente, Corail, no qual um grupo de organizações humanitárias fornece serviços à população. "Não temos eletricidade, escolas, saúde. Nem latrinas há aqui. Água potável só chega de vez em quando, e é vendida. Quem não tem dinheiro não consegue comprar", afirma Fedqui. O alfaiate Alsegar Villecean, 53 anos, diz que a situação em Jerusalém é "incomparável". "Desde que nos mudamos para cá, há um ano, não recebemos a visita de nenhuma organização para saber como estamos", afirma. Desemprego O alfaiate não consegue emprego, mas costura uniformes para crianças Assim como a maioria dos desabrigados, em um país em que a taxa de desemprego chega a 80%, Villecean não conseguiu mais trabalho após o terremoto. "Sou alfaiate profissional, mas não tenho como exercer meu ofício em uma comunidade em que as pessoas não têm dinheiro nem para comer", diz. No entanto, ele permanece ativo. Na máquina de costura que é um dos poucos móveis dentro da tenda em que vive, Villecean fabrica uniformes para as crianças do acampamento. "Não são para vender. As pessoas que têm condições de mandar seus filhos para a escola trazem o tecido, e eu faço os uniformes de graça", diz. No acampamento de Cité Soleil, no fim de dezembro, Clara Morézile riu quando a reportagem da BBC Brasil perguntou como ela passaria o Natal. "Vou passar assim". Ao comentar sobre o que espera para o próximo ano, ela disse não esperar nada. "A única pessoa que poderia nos ajudar a ter uma vida melhor é meu marido, mas ele teve a perna esmagada no terremoto e não pode mais trabalhar. Daqui a um ano ainda vou estar vivendo nesta barraca." BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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