Um antigo rei do Camboja está de volta, mas com um rosto bastante familiar

Ao menos sete estátuas de Sdech (Rei) Kan, figura mítica que libertou o povo da tirania no século 16, foram instaladas em diversos pontos do país; monumentos possuem características faciais bastante parecidas com as do atual primeiro-ministro, Hun Sen

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PREY NOKOR KNUNG, CAMBOJA - Muito tempo atrás, em uma região remota do Camboja, um ousado e jovem servo em um templo liderou um Exército, tirou do poder um rei injusto e salvou a nação.

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De acordo com as histórias que se contam, o Sdech (Rei) Kan podia andar sobre a água, obrigar dragões a fazerem sua vontade e atirar quatro flechas de uma vez com um único arco. Durante seu breve reinado no século 16, Kan inventou a primeira moeda do Camboja e foi o pioneiro no conceito de consciência de classes três séculos antes de Karl Marx.

Estátua do Sdech (rei) Kan, que tomou o poder no Camboja no século 16, na cidade de Prey Veng Foto: Quinn Ryan Mattingly/The New York Times

Agora, a figura do antigo rei parece estar em todos os cantos do país graças a uma iniciativa do primeiro-ministro Hun Sen - outro homem comum que se tornou um soberano -, que tem se esforçado tanto para se identificar com a figura semi-mítica de Kan que alguns suspeitam de que ele se considera a reencarnação do antigo monarca.

Pelo menos sete estátuas de Kan foram erguidas em vários locais do Camboja nos últimos anos, todas com características faciais bastante parecidas com as de Hun Sen. 

Em geral, os monumentos foram encomendados por funcionários do governo ou ricos empresários que desejavam mostrar lealdade ao autoritário primeiro-ministro, diz Astrid Noren-Nilsson, professora conferencista na Lund University, na Suécia, que se especializou na política cambojana.

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"Eu imagino que Hun Sen se considera uma reencarnação de Sdech Kan, destinado a liderar a nação através da proeza e do poder", afirma Astrid.

Em seus discursos, Hun Sen destacou que tanto ele quanto Kan nasceram no Ano do Dragão, uma coincidência simbolicamente potente em um país supersticioso. Ele patrocinou pesquisas para encontrar o local exato da capital do reino de Kan - que se mostrou não muito longe do local onde o atual premiê nasceu - e pagou para que o local se tornasse uma atração turística.

Em agosto, Kan transformou-se também no herói de um filme de ação amplamente promovido e dirigido por um funcionário da atual administração.

O primeiro-ministro do Camboja, Hun Sen, participa de cerimônia pela paz e estabilidade do país Foto: REUTERS/Samrang Pring

David Chandler, historiador do Camboja e professor emérito da Monash University, na Austrália, explica que o mito de Kan é útil para Hun Sen, cujos maiores rivais eram da realeza cambojana, porque ambos vieram de classes comuns da sociedade.

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"Ele quer se conectar com algumas partes do passado do Camboja que não necessariamente têm relação com a família real e o faz com certa dose de coragem e populismo que acredita possuir", afirma Chandler. "Na história do Camboja, existem poucos personagens como Kan."

Assim como Kan - ou pelo menos de acordo com as lendas centenárias que contam sua história, mas que estudiosos consideram duvidosas -, Hun Sen era uma pessoa comum do leste do Camboja. Como o rei, ele vivia em um templo budista antes de sua ascensão e de se tornar um comandante militar que se levantaria contra dirigentes opressores.

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Com histórico de participação na guerrilha Khmer Rouge, Hun Sen trocou de lado e ajudou os invasores vietnamitas a derrubarem o regime brutal e foi nomeado como primeiro-ministro em 1985. Ele controla o país desde então através de alianças cuidadosamente estruturadas, supressão implacável da dissidência e uma forte dose de automitificação, dando ênfase ao seu status de libertador nacional.

Ao derrotar ou eliminar seus rivais, Hun Sen reuniu cada vez mais poder e mostrou uma tendência de confundir o Estado com seu domínio pessoal. Ao longo do caminho, ele e seus mais leais seguidores sutilmente modificaram a histórica de Sdech Kan para retratá-lo como uma figura visionária, redentora e democrática.

Durante um discurso em outubro, o primeiro-ministro elogiou as "glórias" do regime de Sdech Kan, do qual ele disse ter aprendido muito sobre democracia - e como tratar seus oponentes.

Local que teria sido capital do reino de Sdech Kan foi transformado em atração turística pelo governo do Camboja Foto: Quinn Ryan Mattingly/The New York Times

"Sdech Kan fez a primeira revolução democrática popular, antes mesmo de Lenin, Karl Marx e Engels e outros países, ao prometer ao povo, 'para aqueles que apoiarem, os libertar da classe social que os obriga a serem servos em templos'", afirmou Hun Sen.

Os que não apoiaram Kan, por outro lado, "não tinham direitos e poder e não podiam trabalhar para o governo", explicou o premiê. Na ocasião, ele sugeriu que poderia seguir o exemplo para se livrar de "pessoas difíceis".

Um mês depois, a Suprema Corte do Camboja, liderada por um juiz fiel a Hun Sen, dissolveu o Partido Nacional Resgate do Camboja, a única oposição viável nas eleições previstas para 2018. Os líderes do partido estão na prisão ou se exilaram no exterior.

O príncipe Sisowath Thomico, membro da família real do Camboja alinhado com o que restou da oposição no país, diz que a interpretação de Hun Sen sobre o mito de Sdech Kan é "muito curiosa". Ele destaca que Kan foi derrubado e morto depois de apenas quatro anos no trono, por um príncipe da antiga linhagem real que reafirmou o direito de sua família de governar.

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Premiê do Camboja pagou restauração de templo em Prey Nokor Knung; Hun Sen tenta se mostrar como reincarnação de Sdech Kan, figura mítica do século 16 Foto: Quinn Ryan Mattingly/The New York Times

"Como ele não é um rei, teve que escolher uma figura pública e se comporta como um lorde", diz o príncipe sobre o primeiro-ministro. 

Chandler, o historiador, afirma que Hun Sen parece ser ver cada vez mais como uma encarnação da nação, uma ideia com implicações ameaçadoras para o que resta da democracia cambojana. "Se você é a encarnação do país, você simplesmente nunca deixa o poder." / NYT

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