Um desfecho para a ''Grande Ruptura''

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Por David Brooks
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Em 1962, Daniel Bell publicou um livro chamado The End of Ideology ("O fim da Ideologia"). O título era nevrálgico porque refletia a visão, comum na época, de que os Estados Unidos estavam prestes a deixar para trás a política ideológica, brutal, que caracterizou a década de 30 e o início da Guerra Fria. Nos anos 60, acreditava-se, imperaria o pragmatismo sem concessões. Em vez disso, tivemos o que Francis Fukuyama chamou mais tarde de "A Grande Ruptura". A economia da informação provocou o rompimento da economia industrial. A revolução feminista mudou as relações familiares e entre sexos. A revolução dos direitos civis subverteu os acordos sociais. A Guerra do Vietnã desacreditou o establishment. No geral, essas rupturas foram necessárias e boas, mas a transição foi dolorosa. As pessoas perderam a crença nas velhas normas sociais, mas as novas não emergiram. O resultado foi a desordem. As taxas de divórcio subiram vertiginosamente. O número de crimes explodiu. A fé nas instituições entrou em colapso. A confiança social esfacelou-se. À medida que os elos comunitários se dissolviam, a autonomia individual se impunha. Os liberais defendiam a liberação moral dos indivíduos. Os conservadores promoviam a liberação econômica. O resultado foi a perda da coesão social e comunitária, e o surgimento daquilo que Christopher Lasch chamou de a cultura do narcisismo. Em vez de acabar com a ideologia, a Grande Ruptura produziu políticas ideológicas. O enfraquecimento das normas sociais levou a batalhas acirradas, à medida que os grupos competiam para criar novas regras. O pessoal tornou-se político. Grupos guerreavam pelas normas básicas de moralidade. Os republicanos passaram a vencer as eleições porque os liberais estavam associados à desordem e os conservadores à tentativas para restaurar a ordem. Mas ambos os lados estavam contaminados pelo mesmo estilo desintegrador. A política não tinha a ver somente com alocação de recursos, mas significava uma disputa sobre valores, estilos de vida e a situação da sua tribo. Esse estilo viperino dominou a política durante duas presidências "baby-boomers" (da geração do pós-guerra) de Clinton e Bush. Mas as sociedades se recuperam lenta e organicamente. Em 2003, Rick Warren escreveu um livro que ficou muito popular chamado The Purpose Driven Life ("Uma Vida com Propósitos"). A primeira frase do livro era: "Não é sobre você." Esse foi um sinal de que a era do individualismo expressivo estava próxima do fim. Novos padrões comunitários e novas normas sociais começavam a se aglutinar. A taxa de criminalidade entrou em queda, assim como o número de adolescentes grávidas e tantos outros indicadores sociais. Uma grande quantidade de jovens passou a desempenhar serviços comunitários. Casais constituíram famílias, procurando colher os frutos do movimento feminista e, ao mesmo tempo, preservar o melhor do tradicionalismo. Na esfera cultural, a Grande Ruptura chegou ao fim. Novas normas e padrões sociais se instalaram. Barack Obama é um exemplo dessa renovação social. Produto de uma família desarticulada, ele formou sua própria família com base em um modelo fortemente tradicional, chefiada por dois adultos profissionalmente realizados. De uma certa maneira, quase inusitada, ele é um exemplo de disciplina, equilíbrio e autocontrole. Sob sua liderança, como Peter Beinart observou na Time, os democratas passaram a ser vistos como o partido da ordem, enquanto republicanos começaram a ser associados à desordem. RENOVAÇÃO SOCIAL O desafio que se coloca diante de Obama é traduzir essa renovação social que ocorreu na década passada em uma renovação política e de governo. Parte disso foi visto em seu discurso de posse, no qual ele enfatizou os temas da responsabilidade, coesão e unidade. Ao mesmo tempo, rejeitou a cultura do vale tudo, que tomou conta do mundo financeiro. Parte dessa tarefa será cumprida com seu estilo de governo. Obama pretende realizar a política do fim da ideologia que Daniel Bell e outros vislumbraram nos anos 60. Ele se vê como um pragmático, um empírico. A política não é uma questão pessoal para ele. Não transforma desacordos políticos numa disputa de status entre uma e outra pessoa. Está convencido de que muitos americanos praticam a sua política no limite. Outra parte será cumprida por meio de um grande esforço. Ele já vem cooperando com os republicanos. Rejeitou o conselhos dos velhos guerreiros liberais que querem castigo e isolamento. Mas o real teste virá na esfera política. Os próximos meses serão ocupados com o pacote de estímulo. E quem não está aterrorizado com a perspectiva de gastar US$ 800 bilhões precipitadamente não estudou a diferença entre textos de economia e a maneira como o governo realmente opera. Mas, depois disso, os integrantes do campo de Obama esperam criar a Grande Negociação. Isso significa dar origem a uma cultura de coesão e lidar com questões que exigem um sacrifício conjunto - como reduzir os déficits, solucionar os problemas do Medicare e da previdência social, reformar a assistência à saúde. Esses problemas eram insolúveis numa era de divisão e desconfiança. Na estação climática que inaugura sua presidência, o inverno de 2010, Obama vai procurar restaurar fundamentalmente o equilíbrio do governo americano. Se conseguir, a Grande Ruptura terá realmente chegado ao fim. O próximo capítulo da história americana terá início num terreno mais firme. * David Brooks é colunista do ?The New York Times?

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