Um líder nacionalista sérvio ameaça a frágil paz na Bósnia

Governo multiétnico da Bósnia enfrenta sua maior crise desde as guerras dos Bálcãs, e Milorad Dodik ameaça destruir o país

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Por Andrew Higgins
Atualização:

BANJA LUKA, Bósnia e Herzegovina - Quando a agência de medicamentos da Bósnia inspecionou o oxigênio vendido a hospitais para tratar pacientes com covid-19 na região controlada pelos sérvios do país, em setembro, fez uma descoberta chocante: o oxigênio servia apenas para uso em máquinas industriais, não para seres humanos.

Monumento em Prijedor, na Bósnia, em homenagem aos soldados sérvios bósnios mortos na década de 1990;muitos sérvios, como Milorad Dodik, negam crimes de guerra cometidos por parentes étnicos e se consideram vítimas Foto: Laura Boushnak/The New York Times

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Mas, em vez de tentar corrigir a situação, o líder da região, Milorad Dodik, um belicoso nacionalista sérvio, tentou destruir o tecido multiétnico do Estado bósnio, uma união frágil criada em 1995 pela diplomacia americana a partir dos destroços da guerra. 

Primeiro, Dodik anunciou que estava criando sua própria agência de medicamentos e retirando seu feudo, que cobre cerca de metade do território da Bósnia, da supervisão dos inspetores do governo central.

Desde então, ele ameaçou se retirar das forças armadas multiétnicas da Bósnia e formar seu próprio exército exclusivamente sérvio. Ele também quer sair da agência de impostos do Estado, de seu serviço de inteligência e seu Judiciário, prometendo acelerar o que ele chama de "dissolução pacífica" de um Estado bósnio nascido por um acordo de paz firmado em 1995 em Dayton, Ohio.

Investigadores bósnios rastrearam os carregamentos de oxigênio até uma empresa controlada por um dos aliados políticos próximos a Dodik. Alguns diplomatas estrangeiros e políticos rivais veem suas ameaças separatistas principalmente como um meio de se esquivar das alegações de corrupção.

Mas em uma região onde a sombra da guerra está por toda parte, muitos bósnios temem que a paz do país esteja ameaçada. “Não será pacífico”, advertiu Sefik Dzaferovic, um dos três presidentes da Bósnia, cada um foi eleito para representar um grupo étnico específico.

Milorad Dodik (centro),um nacionalista sérvio, quer criar sua própria agência de remédios, depois que autoridades descobriram que ele fornecia oxigênio industrial a doentes com covid Foto: Damir Sagolj/The New York Times

Bósnia ainda é uma colcha de retalhos

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Uma colcha de retalhos de diferentes povos e religiões, a Bósnia tem sido há um bom tempo um barril de pólvora para conflagrações maiores.

Foi em Sarajevo, capital da Bósnia, que um nacionalista sérvio adolescente desencadeou a 1.ª Guerra ao assassinar um arquiduque austríaco em junho de 1914, e onde os discursos aparentemente enlouquecidos de um psiquiatra sérvio, Radovan Karadzic, pressagiaram uma onda de derramamento de sangue de três anos na década de 1990.

Essas guerras nos Bálcãs deixaram cerca de 140 mil mortos, atraíram aviões de guerra e soldados da Otan e criaram um fosso entre a Rússia e o Ocidente que permanece até hoje.

Agora os Estados Unidos e a União Europeia, à qual a Bósnia aspira aderir, estão desesperados para impedir que a nova crise se transforme em conflito ou crie o tipo de instabilidade política que a Rússia poderia explorar. A Rússia, que quer impedir a Bósnia de entrar no bloco ou na Otan, já está do lado de Dodik.

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Os atritos na Bósnia têm suas raízes no acordo de paz de Dayton, de 1995, intermediado pelos Estados Unidos. O acordo interrompeu a luta, mas criou um sistema político elaborado e altamente disfuncional, com uma autoridade central fraca em que diferentes grupos étnicos compartilham o poder. O trio de presidentes eleitos são Dodik, que representa os sérvios, Dzaferovic, que representa os bósnios muçulmanos, conhecidos como bosníacos, e Zeljko Komsic, um croata étnico. Dodik vem fazendo barulho sobre a secessão sérvia há mais de uma década, mas nunca antes provocou uma crise tão volátil. Um relatório de outubro do alto funcionário das Nações Unidas na Bósnia, Christian Schmidt, da Alemanha, descreveu a situação como "a maior ameaça existencial" para a sobrevivência do país desde o início dos anos 1990.

Schmidt, em uma entrevista recente, minimizou o risco de um retorno ao derramamento de sangue e disse que esperava que Dodik recuasse de sua ameaça de formar um exército étnico sérvio separado. Entre muitos bósnios, no entanto, o medo está novamente em alta.

Quando Schmidt se reuniu em meados de dezembro com alunos de uma escola profissionalizante em Tuzla, uma cidade onde diferentes grupos étnicos da Bósnia tendem a viver em rara harmonia, ele foi repetidamente questionado sobre o que estava fazendo para evitar um retorno à guerra.

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Um aluno lembrou que seus pais haviam vivido o horror do conflito da Bósnia entre 1992-95 e perguntou: "Você pode nos prometer que isso não vai acontecer de novo?" Outro disse a Schmidt: “Mal posso esperar para deixar este país, onde a palavra ‘guerra ’está sendo cada vez mais usada”.

Uma professora exibiu uma fotografia de 1991 que mostrava uma dúzia de seus alunos na época, todos parecendo relaxados e felizes. Um quarto deles, ela disse, morreu na luta que começou pouco depois.

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Europa ainda discute se aplica sanções a Dodik

Na Europa, a resposta às provocações de Dodik foi mista. Alemanha e Reino Unido estão discutindo sanções. Mas o líder autoritário da Hungria, Viktor Orbán, visitou recentemente a capital da região sérvia, Banja Luka, para oferecer apoio a Dodik e prometeu vetar qualquer movimento da União Europeia para impor sanções. Sob o acordo de Dayton, a Bósnia é dividida em duas partes basicamente autônomas: o território sérvio de Dodik, conhecido como Republika Srpska, e uma federação controlada por bosníacos e croatas étnicos. A federação, por sua vez, é dividida em 10 “cantões”, cada um com seu próprio governo.

Muitos bosníacos veem as ações disruptivas de Dodik como prova de que os sérvios bósnios nunca deveriam ter sido autorizados pelo acordo de Dayton a permanecerem em seu próprio domínio, uma entidade com homens como Karadzic e o ex-comandante sérvio bósnio Ratko Mladic, que desde então, foram condenados por genocídio em Haia pelo massacre de Srebrenica em julho de 1995 e outras atrocidades.

Christian Schmidt, o alto representante da ONU naBósnia e Herzegovina, recentemente descreveu a situação como “a maior ameaça existencial” à sobrevivência do país desde o início dos anos 1990 Foto: Damir Sagolj/The New York Times

as Dodik e muitos de seus colegas sérvios ainda negam crimes de guerra cometidos por parentes étnicos e, em vez disso, se veem como vítimas, como fizeram durante a guerra. Eles agora afirmam que os sérvios bósnios estão sendo injustamente perseguidos, após uma decisão em julho do antecessor de Schmidt como enviado da ONU que proibiu a negação de genocídio. A proibição se aplica a todos os grupos étnicos, mas muitos sérvios bósnios consideram-na direcionada a eles. Mirko Sarovic, líder de um partido político sérvio oposto a Dodik, denunciou a proibição como um “grande erro”. Em uma entrevista, ele disse que isso incentivou nacionalistas beligerantes, reforçou o apoio público anteriormente declinante de Dodik e o encorajou a embarcar em uma "aventura imprudente" que "não tem chance de sucesso e tem enorme potencial para provocar um conflito". Dodik foi um ex-protegido americano que o governo Clinton elogiou em 1998 como uma "lufada de ar fresco". Agora, o enviado especial do presidente Biden à região, Gabriel Escobar, o chama de uma ameaça que "apunhala e atinge o coração de Dayton". Em outubro, Dodik advertiu que os sérvios na Bósnia “nos defenderiam com nossas forças se necessário” e disse que “nossos amigos” - a saber, a Rússia e a vizinha Sérvia - poderiam repelir qualquer esforço da aliança da Otan para controlá-lo.

A Sérvia, porém, não demonstrou interesse em repetir seu papel na década de 1990, quando enviou armas e grupos paramilitares para apoiar parentes étnicos na Bósnia. E o quanto a Rússia realmente apoia Dodik não está claro. No mês passado, ele voltou de uma visita a Moscou alegando que havia recebido promessas de apoio durante uma reunião com o presidente Vladimir Putin. Mas o Kremlin, que geralmente anuncia as reuniões com bastante antecedência, esperou dias antes de confirmar que ela havia acontecido. Em seguida, colocou o líder sérvio em seu lugar, dizendo que o "evento principal" de Putin naquele dia havia sido uma "conferência sobre o carvão", não Dodik. Ainda assim, o Kremlin claramente se delicia ao ver a Bósnia em desordem, visto que os Estados Unidos e a Europa já a defenderam como uma vitrine da construção de uma nação bem-sucedida. Durante anos, Putin advertiu as terras ex-comunistas da Europa Oriental que as promessas ocidentais de paz e prosperidade eram vazias.

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A grande questão é se as ameaças de Dodik são reais ou são principalmente um teatro político para reunir sua base nacionalista antes das eleições de outubro. “Ele provavelmente não sabe aonde isso vai levar”, disse Schmidt, o enviado da ONU, acrescentando que ele estava em uma “estrada perigosa e escorregadia”.

Nacionalista da Bósnia quer manter investigações sobre corrupção longe dele

Dodik indicou em particular, dizem diplomatas, que seu principal interesse é manter os promotores públicos fora de seu domínio para eliminar o risco de que relatórios confiáveis de corrupção galopante sejam investigados seriamente - incluindo o escândalo sobre o oxigênio industrial para os pacientes de covid. O órgão de saúde da Bósnia rastreou essas remessas até uma empresa com sede na cidade natal de Dodik, Laktasi, que é controlada pelo ex-ministro do Interior de sua região sérvia.

“É tudo um jogo político, e a política na Bósnia é apenas uma cortina de fumaça para encobrir o crime”, disse Aleksandar Zolak, chefe da agência de medicamentos, em uma entrevista. “Dodik sabe que só pode ser exposto por instituições independentes e pessoas que dizem a verdade, por isso está fazendo tudo o que pode para destruí-los.” No entanto, Dodik aproveitou o momento para paralisar o governo central. Os três presidentes devem se reunir a cada duas semanas para assinar propostas importantes. Mas eles não se encontram desde outubro, quando Dodik apareceu com um acordeão e começou a cantar canções folclóricas sérvias em seu escritório com um grupo de apoiadores.

Desde então, ele rejeitou ou ignorou todas as propostas apresentadas a ele e a seus colegas presidentes. “Dodik sobrevive no conflito”, disse Branislav Borenovic, líder do partido de oposição sérvio.

 “Ele odeia estabilidade porque precisa explicar por que vivemos como vivemos”, ele disse, acrescentando que Dodik “joga com as emoções de seu povo e não se importa com as consequências”.

Mesmo que Dodik esteja apenas fazendo política, disse Borenovic, suas travessuras estão levando as paixões a um nível perigoso: “Em um país de 3 milhões de pessoas, você sempre pode achar alguns idiotas que queiram acender o fogo.” / TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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